Defendendo uma visão de natureza social da violência no Recife
A morte não é uma entidade moral nem metafísica. Ela é numa sociedade de classes como a nossa uma questão de inclusão/exclusão social, de integração/desintegração de parcelas da população a um todo estruturado do universo social, e, portanto, é algo necessariamente relacionado à esfera publica de uma ordem social dada. Em suma, é um problema de todos e que não pode ser tratado simplesmente como uma ameaça às parcelas favorecidas de um dado meio. Mas sabendo disso, onde estaria o ponto cego produtor dessa passividade diante de problemas tão estruturalmente fundadores de nossa sociedade? Por que ninguém toca no assunto da degradação de agrupamentos inteiros da sociedade como indicador objetivo da produção de nossa violência urbana? Talvez não tenha elementos para responder as razoes de tal denegação coletiva de uma verdade social certamente dura demais para ser aceita e/ou encarada diretamente. Nesse texto, contudo, apoiado em alguns exemplos trágicos de nossa vida cotidiana, gostaria apenas de defender a idéia segundo a qual em nossa sociedade continuamos enfrentando o problema da violência e de sua conseqüência mais brutal (a morte de seres humanos) como se fosse uma questão de esfera privada num nível puramente moral. O que é a meu ver um erro, pois, vista a gravidade e a natureza social das mortes ocasionadas e de nossas reações diante delas, seria preciso entender que o buraco da bala é indissociável do nosso fosso social.
O jovem Rafael morre assassinado aos 21 anos. A imprensa noticia, evidencia os índices inaceitáveis de violência, as pessoas aparecem revoltadas, afinal perde-se uma vida valiosa, uma existência importante. Qual é o problema “ético” por trás do debate sobre essa noticia? Era uma morte que não deveria ter acontecido e absurdamente aconteceu. Tudo bem. Foi um crime horrendo. Mas e as outras mortes? Aquelas que aparecem diariamente nos cadernos policiais? Não, essas não fazem parte do “problema da violência”, pois, como sabido, não são mortes absurdas, a existência de “marginais”, de “almas sebosas”, de “assassinos” tem seu tempo contado. São mortes “naturais”. O que essa discrepância de tratamento das mídias, mas também, porque não aceitar, do nosso em relação ao mesmo fenômeno (a morte) tem a ver com idéia defendida nesse texto da natureza social da violência e do tratamento privado de um problema publico?
Vejamos.
Sem querer estuprar meu argumento com um paralelismo exagerado, não acho um desproposito falar, como Florestan Fernandes falava do problema da integração do negro na sociedade de classes, da violência urbana do Recife em termos de um “protesto mudo” oriundo de uma rale que responde, agora, aos desesperos ocasionados, desde outrora, por uma profunda “desilusão social”. Digo isso porque algumas perguntas não param de soar como sinos em minha cabeça: será que ainda é preciso se perguntar por que a questão da violência não pode ser desvinculada da questão da desigualdade social? É necessário ainda lembrar da existência do fosso social e da apartação entre as classes sociais no Recife e no Brasil? Não é suficiente se perguntar de onde veio esse homem (muitas vezes ainda nem mesmo em idade adulta, um adolescente) capaz de matar sem titubear ou sem aparentar dilemas morais mais sérios diante de uma execução para perceber que estamos diante de um problema profundamente, estruturalmente social? Por que insistimos em “privatizar” nossos problemas e nos “vitimizar” fugindo do enfretamento direto com o problema real de ordem publica que é o de que o assassino existe porque uma classe de desprovidos de valor foi produzida por nossa sociedade excludente de classes? Ou não seria uma nova classe uma categoria de pessoa sem valor nos dois sentidos que não ter nenhum valor pode ter: o de grupo de pessoas que não tem valor social (e que por isso suas mortes são aceitas sem mais estardalhaço da mídia) e no sentido de pessoas sem valor moral(e que por isso matam sem prejuízo de consciência)?
Tenho consciência de que com esse tipo de reflexão eu posso ser acusado de estar reificando a sociedade, hipostasiando-a com atributos e responsabilidades que são dos homens, dos indivíduos. Mas gostaria que atinassem para o fato que viso apenas colocar a centralidade do deslocamento do problema da esfera de soluções privadas, para que a violência seja tratada com alguma propriedade.
Peguemos assim um outro exemplo daquilo que acho ser indicador dos invariantes estruturais do comportamento social contido nas maneiras que as classes sociais mais abastadas no Recife universilizam suas particularidades.
Estava eu conversando com um amigo e ele me disse o seguinte:
“hoje uso bicicleta como principal meio de transporte. Só que a classe media usa como hobbie e querem ter seus direitos como ciclistas... Mas não vêem que tem milhões de ciclistas pobres que andam por recife porque a bicicleta são seus meios de transportes.
ou seja, eu resolvo o meu... o resto que se foda!”
Eis um exemplo de como um problema publico, o das ciclovias, que deveria ser um problema de todos os ciclistas, torna-se um problema dos ciclistas da classe media. Isso se tratando de lazer. Mas poderíamos lembrar da água que também era um problema de ordem publica e que foi tratado com a perfuração de poços (privados) nos prédios da nossa classe media alta? E o estado de nossas escolas publicas? Dos hospitais? Não sei se nesses casos qualquer semelhança é mera coincidência.
A morte do jovem Rafael talvez não tenha nada a ver com essas coisas levantadas, como proponho. Talvez, as passeatas pela paz que já vi alguns defenderem após a noticia da morte do rapaz possa surtir efeitos e tenham algum sentido a mais do que ser mais uma alternativa recalcada (de classe media) para um problema publico (que deveria envolver todos os setores e parcelas das diferentes classes, na medida que isso fosse possível). E dizer que é um problema de todos significa aceitar a natureza social dessa tragédia e suas implicacoes(algumas indicadas no corpo desse texto) Ate quando iremos fugir?
A morte não é uma entidade moral nem metafísica. Ela é numa sociedade de classes como a nossa uma questão de inclusão/exclusão social, de integração/desintegração de parcelas da população a um todo estruturado do universo social, e, portanto, é algo necessariamente relacionado à esfera publica de uma ordem social dada. Em suma, é um problema de todos e que não pode ser tratado simplesmente como uma ameaça às parcelas favorecidas de um dado meio. Mas sabendo disso, onde estaria o ponto cego produtor dessa passividade diante de problemas tão estruturalmente fundadores de nossa sociedade? Por que ninguém toca no assunto da degradação de agrupamentos inteiros da sociedade como indicador objetivo da produção de nossa violência urbana? Talvez não tenha elementos para responder as razoes de tal denegação coletiva de uma verdade social certamente dura demais para ser aceita e/ou encarada diretamente. Nesse texto, contudo, apoiado em alguns exemplos trágicos de nossa vida cotidiana, gostaria apenas de defender a idéia segundo a qual em nossa sociedade continuamos enfrentando o problema da violência e de sua conseqüência mais brutal (a morte de seres humanos) como se fosse uma questão de esfera privada num nível puramente moral. O que é a meu ver um erro, pois, vista a gravidade e a natureza social das mortes ocasionadas e de nossas reações diante delas, seria preciso entender que o buraco da bala é indissociável do nosso fosso social.
O jovem Rafael morre assassinado aos 21 anos. A imprensa noticia, evidencia os índices inaceitáveis de violência, as pessoas aparecem revoltadas, afinal perde-se uma vida valiosa, uma existência importante. Qual é o problema “ético” por trás do debate sobre essa noticia? Era uma morte que não deveria ter acontecido e absurdamente aconteceu. Tudo bem. Foi um crime horrendo. Mas e as outras mortes? Aquelas que aparecem diariamente nos cadernos policiais? Não, essas não fazem parte do “problema da violência”, pois, como sabido, não são mortes absurdas, a existência de “marginais”, de “almas sebosas”, de “assassinos” tem seu tempo contado. São mortes “naturais”. O que essa discrepância de tratamento das mídias, mas também, porque não aceitar, do nosso em relação ao mesmo fenômeno (a morte) tem a ver com idéia defendida nesse texto da natureza social da violência e do tratamento privado de um problema publico?
Vejamos.
Sem querer estuprar meu argumento com um paralelismo exagerado, não acho um desproposito falar, como Florestan Fernandes falava do problema da integração do negro na sociedade de classes, da violência urbana do Recife em termos de um “protesto mudo” oriundo de uma rale que responde, agora, aos desesperos ocasionados, desde outrora, por uma profunda “desilusão social”. Digo isso porque algumas perguntas não param de soar como sinos em minha cabeça: será que ainda é preciso se perguntar por que a questão da violência não pode ser desvinculada da questão da desigualdade social? É necessário ainda lembrar da existência do fosso social e da apartação entre as classes sociais no Recife e no Brasil? Não é suficiente se perguntar de onde veio esse homem (muitas vezes ainda nem mesmo em idade adulta, um adolescente) capaz de matar sem titubear ou sem aparentar dilemas morais mais sérios diante de uma execução para perceber que estamos diante de um problema profundamente, estruturalmente social? Por que insistimos em “privatizar” nossos problemas e nos “vitimizar” fugindo do enfretamento direto com o problema real de ordem publica que é o de que o assassino existe porque uma classe de desprovidos de valor foi produzida por nossa sociedade excludente de classes? Ou não seria uma nova classe uma categoria de pessoa sem valor nos dois sentidos que não ter nenhum valor pode ter: o de grupo de pessoas que não tem valor social (e que por isso suas mortes são aceitas sem mais estardalhaço da mídia) e no sentido de pessoas sem valor moral(e que por isso matam sem prejuízo de consciência)?
Tenho consciência de que com esse tipo de reflexão eu posso ser acusado de estar reificando a sociedade, hipostasiando-a com atributos e responsabilidades que são dos homens, dos indivíduos. Mas gostaria que atinassem para o fato que viso apenas colocar a centralidade do deslocamento do problema da esfera de soluções privadas, para que a violência seja tratada com alguma propriedade.
Peguemos assim um outro exemplo daquilo que acho ser indicador dos invariantes estruturais do comportamento social contido nas maneiras que as classes sociais mais abastadas no Recife universilizam suas particularidades.
Estava eu conversando com um amigo e ele me disse o seguinte:
“hoje uso bicicleta como principal meio de transporte. Só que a classe media usa como hobbie e querem ter seus direitos como ciclistas... Mas não vêem que tem milhões de ciclistas pobres que andam por recife porque a bicicleta são seus meios de transportes.
ou seja, eu resolvo o meu... o resto que se foda!”
Eis um exemplo de como um problema publico, o das ciclovias, que deveria ser um problema de todos os ciclistas, torna-se um problema dos ciclistas da classe media. Isso se tratando de lazer. Mas poderíamos lembrar da água que também era um problema de ordem publica e que foi tratado com a perfuração de poços (privados) nos prédios da nossa classe media alta? E o estado de nossas escolas publicas? Dos hospitais? Não sei se nesses casos qualquer semelhança é mera coincidência.
A morte do jovem Rafael talvez não tenha nada a ver com essas coisas levantadas, como proponho. Talvez, as passeatas pela paz que já vi alguns defenderem após a noticia da morte do rapaz possa surtir efeitos e tenham algum sentido a mais do que ser mais uma alternativa recalcada (de classe media) para um problema publico (que deveria envolver todos os setores e parcelas das diferentes classes, na medida que isso fosse possível). E dizer que é um problema de todos significa aceitar a natureza social dessa tragédia e suas implicacoes(algumas indicadas no corpo desse texto) Ate quando iremos fugir?
Jampa