A escrita
Escrever é uma atividade artificial. No sentido de ser o resultado final, o texto, um artefato. Tratar de temas sensíveis pela escrita parece sempre deixar no homem um sentimento de traição. Pois ater-se aos sentimentos é fazer jogar a razão contra o sensível: refletimos contra o sentimento da péle que sente a dor quando dói, o ardor na quentura.
Escrever é trair
E mesmo a criação do paragrafo impessoal, sem primeira e única pessoa, é ainda assim um efeito produzido pela tecnica. Construimos o distanciamento, a impressão da distância. Na verdade vê-se nisso uma maneira de tentar encontrar palavras falantes por si mesmas, sem intermédio, sem mediação. Tudo ilusão proposital. Traição.
Traição
Intento, mesmo assim, traindo-me, escrever sobre a morte.
Le retable d'Issenheim
Começo afirmando: viver a morte é caracterizar a existência. Digo isso pensando na arte de Ionesco. Na crítica dele à naturalização da morte feita na modernidade. Sim. O mundo moderno impôs seu hedonismo barato, adotou seu carpem diem coagulado no cinismo e ocultou o apelo do momento mori, que é uma espécie de aproveite o dia com lembrete final: “teu dia chegará”. Le roi s’est mort, anunciou Ionesco falando da vida como se ela fosse uma continuação da morte, não o contrário. Inverteu o sinal da cruz... Como Nietzsche salvando o cristo do cristianismo, Ionesco salva a imagem da morte no seu carater emblemático de prática contestatória: se o cristo é lembrado pelo filósofo alemão como um individuo notável o qual teve como qualidade maior um espírito crítico negador da autoridade sacerdotal, a morte em Ionesco aparece como força de negação de uma vida dada ao além, ela é o presente vivido enquanto perda. Lembrei disso ao ver domingo passado no Museu d’Unterlinden Le Retable d’Issenheim de Grünewald. Uma pintura da crucificação de Jesus. Impressionante. Bacon muito inspirou-se dela para nos seus quadros reproduzir as imagens da dor humana. O sensível da carne sangrenta, dos pregos cravados na palma das mãos expressando a agudez da dor pelo estirar dos dedos recontorcidos para cima, da boca azulada, do expressionismo dos pés rasgados. Tudo estático como se a agônia fosse se enternizar... Sempre tive dificuldade com as artes plásticas... Nunca consigo imaginar o movimento indicado nas obras. Alí vi, por isso, uma grande cristalização da dor. Fotografia da agônia dolorida e infinita.
Lembrança mistica
Lembrei também que Tereza e meu pai sempre expressaram uma concepção mística da morte. Acho que a grandeza da visão deles decorre da recusa de apagar a presença da morte na vida. Os dois associam pela mística o carpem diem e momento mori. Vendo o Retable d’Issenheim entendi um pouco dessa associação. Ela quer dizer algo sobre a vida e sua vocação de ser uma busca constante de sentido. Associar vida e morte é uma maneira de preencher o vazio deixado pela dúvida maior, pelo medo de achar que tudo pode acabar simplesmente acabando...
segunda-feira, maio 31, 2004
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Quem sou eu (no blogue)
- Jampa
- Recife, Pernambuco, Brazil
- Aqui farei meu diario quase intimo. Mentirei quando preciso. Escreverei em português e, mal ou bem, seguirei com certa coerência as ocilações do espirito, carater e gosto. Desprovido de inteligência precisa, justa será apenas o nome da medida que busca o razoavel no dito. Esperançoso. Jovem gasto, figura preguiçosa e de melancolia tropical sem substância. Porém, como já exprimido em primeiro adjetivo, qualificado e classificado na etiqueta quixotesca. Com Dulceneas e figuras estranhas o "oxymore" pode ser visto como ode a uma máxima de realismo outro do de Cervantes: "bien écrire le médiocre", dizia Flaubert. Mediocres serão meus dizeres. Bem ditos, duvido. Por isso convenho: os grandes nomes citados não devem causar efeito de legitimação. E previno: o estilo do autor das linhas prometidas é tosco, complicado e chato. O importante é misturar minha miséria com outras. Assim o bem dito será o nome de uma vontade de partilhar uma condição e não o da sutileza formal. A bem dizer, aqui findo com minha introdução.
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