sexta-feira, outubro 08, 2004

Recife de dentro pra fora


Chegar na França é como apagar todas as luzes da casa, pegar a lanterna de bolso do Drummond, andar pelos corredores, quartos, salas e, sem medo, quase por prazer, fazer a experiência da luz errante.
Daqui o Recife real parece-me um acaso do meu olhar estranho(chame-o de luz se quiser), ora triste ora contente, porém sempre modelado pelo alcance de uma recordaçao. Ao iluminar apenas seçoes, nunca por inteiro, as dores, os abraços, as alegrias de tantos e em muitos lugares, ele modela pelo limite o ‘visível’ e enquadra a realidade possível. O Recife daqui é focado por uma lanterna doida e triste chamada memória.

Mas o que é o real, perguntava o poeta, senao o acaso da iluminaçao? Minha resposta, contraria ao impeto da poética da lanterna Drummondiana, insiste em ser realista. Parece-me óbvia a existência de uma dor em si, nao dependente de qualquer claridade subjetiva. Posso dar exemplos disso.

Como no reencontro com dona Iracema, lá na UR-6. Encontrei-a lá onde minha memória a havia deixado. Mesmo bairro, mesma casa. As dores pareciam ser menores no passado. Ou talvez fosse a minha lanterninha de criança pouco capaz de focar e clarear tais regioes pouco físicas do espaço humano. Mas lá estava ela, lá na mesma residência.

-Dona Iracema, o que houve com a senhora? Como vao as coisas?
-Meu filho, quanto tempo. Quanto tempo, nao é mesmo? Estou aqui assim, com essa perna assim, meu filho, acabada, sem poder andar.
-O que aconteceu com sua perna dona Iracema? Meu Deus.
-Fui operada três vezes meu filho. O médico errou, a perna está solta, a peça metálica incomoda. Outra equipe médica já indicou a besteira que me fizeram. Minha perna nao tem jeito. Meu filho, Clayton, me abandonou. Nao tenho dinheiro para as dispesas. Nao tenho. Sao muitos os remédios. Muitas as dores.

Nesse momento minha luzinha interna começou a funcionar. Lembrei de Clayton. Brincavamos juntos escorregando no beco coberto de lôdo ao lado da casa dele. Como aquela criança, hoje oficial da aeronautica, veio a ser um homem que deixa sua própria mae se acabar daquele jeito? Imaginei possíveis brigas entre ele e a mae. Talvez uma briga enorme pudesse justificar uma tal situaçao. Penso que nao.A força que movia minha luz se tornou mais forte. Lembrei das peladas com outros amigos. Outras crianças. Sim. Crianças. Hoje, elas sao outra coisa. Ou simplesmente nao sao. A conversa com Vandinho foi assim:

-Porra bicho, quanto tempo. Pai, olha Paulinho. Lembra dele?
-Muito tempo mesmo. Já tens duas filhas! Porra, e grandes desse jeito! Estamos ficando velhos.
-Pois é Paulinho. As duas sao minha vida. Minha e de Claudinha.

Ao ouvir falar de Claudinha me veio a mente o nome do irmao dela, Quênio. Eu tive notícias dele por um outro amigo, mas nao lembrava bem quais. Aí perguntei:

-E Quênio, o que aconteceu com ele? (Nesse momento Claudinha nao estava por perto).
-(Chamando-me um pouco para o lado, mudando o tom da voz e olhando como se estivesse descofiado, descreveu: ) Paulinho, apagaram o cara. Mas o bicho tava foda. Ninguém segurava ele. Claudinha gostava muito dele, mas ele tava foda. Todo mundo queria o gogó dele. Ele tentou matar um capitao da polícia aí. Aí já viu. Ele estava já na entrada da casa dele quando pegaram. Ele tentou fugir, mas acertaram a perna dele. Depois pegaram e acertaram por trás da cabeça, o tiro saiu pelo olho. Ficaram ainda atirando para cima, para comemorar...

Vandinho contava e eu ficava a tentar imaginar o sofrimento da família de Quênio, do de Claudinha, a irma que tanto o amava. Eu joguei bola com Quênio. Eramos crianças. Naquele mesmo lugar, com aquelas mesmas pessoas.
Drumomnd usava a lanterna dele para dar um mergulho no divino. Dizia ele fazer isso até que um dia cansasse e quisesse inventar uma outra dinvindade. Eu, menos poeta, e talvez por isso menos poderoso, gostaria apenas de esconder as pilhas, para nao sofrer com minha luz iluminadora de morbidos inexplicáveis.

Se meu olhar relativisa a dor, se ele é apenas um olhar, dificil é ainda dizer relativo o sofrimento de dona Iracema, daquela perna inferma, da agônia de nao ser ajudada pelo filho.Quem dera poder tirar a pilha, esconder-me da dor de Claudinha...

Apaguem todas as luzes antes de dormir. Apaguem. Claudinha, duma bem e com os anjos.

Jampa.

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Quem sou eu (no blogue)

Recife, Pernambuco, Brazil
Aqui farei meu diario quase intimo. Mentirei quando preciso. Escreverei em português e, mal ou bem, seguirei com certa coerência as ocilações do espirito, carater e gosto. Desprovido de inteligência precisa, justa será apenas o nome da medida que busca o razoavel no dito. Esperançoso. Jovem gasto, figura preguiçosa e de melancolia tropical sem substância. Porém, como já exprimido em primeiro adjetivo, qualificado e classificado na etiqueta quixotesca. Com Dulceneas e figuras estranhas o "oxymore" pode ser visto como ode a uma máxima de realismo outro do de Cervantes: "bien écrire le médiocre", dizia Flaubert. Mediocres serão meus dizeres. Bem ditos, duvido. Por isso convenho: os grandes nomes citados não devem causar efeito de legitimação. E previno: o estilo do autor das linhas prometidas é tosco, complicado e chato. O importante é misturar minha miséria com outras. Assim o bem dito será o nome de uma vontade de partilhar uma condição e não o da sutileza formal. A bem dizer, aqui findo com minha introdução.