A refutação sociológica do argumento biologizante de fenômenos culturais
Existe uma máxima metodológica no trabalho de Emile Durkheim que diz que um fato social só pode ser explicado por outro fato social. Enunciada num livro que tratava dos pressupostos pelos os quais o autor propunha os procedimentos e as disposições intelectuais necessárias para a produção de uma disciplina autônoma, a sociologia, tal requisito metodológico só ganhava plena força quando associado ao que ordenava tratar os fatos sociais como coisa.
Dito dessa forma, a região epistemológica da sociologia se confundiria facilmente com um empirismo ingênuo( que chamaremos aqui-acolá de empiricismo). Empiricismo que esquece que, como dizia Saussure, “o ponto de vista cria o objeto”. Seria injusto chamar Durkheim de empirista tosco, uma vez percebida a ênfase dada pelo autor de As formas elementares da vida religiosa ao principio de exterioridade como sendo um “tratar como”. Ele de fato defendia que o procedimento metodológico fundamental (aquele que garantia a objetividade especifica da sociologia) era também uma “atitude mental” que procura reter aspectos pertinentes do real que não poderiam ser tratados como entidades isoladas sem relações entre si.
Pois bem, feito esse breve preâmbulo de epistemologia da sociologia, gostaria de refletir sobre a possibilidade do estabelecimento concreto de dialogo entre disciplinas como a sociologia e a biologia, em especifico desta última o seu galho chamado neurociência. Instigado pelo interessante debate a respeito de uma pesquisa que busca formular hipóteses sobre os condicionantes neurofisiológicos da violência ( cf : http://www.idelberavelar.com/) ,volto-me para um debate clássico para explorar meu ponto de vista. A ruptura com a lógica da biologia é elemento constituinte da especificidade do tipo de raciocínio ao qual designamos de sociológico.
A questão que me faço é: o que está em jogo quando, por exemplo, queremos saber se existe ou não condicionantes neurofisiológicos para o fenômeno da violência? Se pusermos em par de “equidade epistemológica” a sociologia e as neurociências, se convimos que os dois tipos de ciência formulam seus objetos no mesmo espaço de asserção, é possível e aceitável que o debate a respeito da violência se dê em termos de questionamento sobre procedimentos técnicos de pesquisa (o que a meu ver, é recorrer a uma visão empiricista não condizente com o atual estatuto epistemológico de nenhuma ciência social), como por exemplo, explorar a deficiência ou qualidade da amostragem estatística(ver comentário de Marden Muller, cidato por César, na caixa de mensagens do Biscoito Fino). Por desconhecer às especificidades da neurociência, falo apenas do espaço assertivo da sociologia que, ao que parece, não entra no mesmo regime de verificação e prova (graças!) das ciências, digamos assim, mais popperianas. É nesse sentido que acho que o dialogo entre as duas disciplinas se dá em diferentes regimes de asserção onde o caráter ontológico da violência é situado de maneira diametralmente oposta em cada uma delas.
Trabalhando em analogia, pego um exemplo dessa lógica numa obra de Norbert Elias, Mozart: sociologie d´un genie. Trata-se da afirmação do principio durkheimiano da explicação do fato social pelo fato social. Lidando com as explicações correntes da obra de Mozart ele reage da maneira seguinte às idéias de “gênio nato” e de “dom nato da composição”:
“ Dizendo de uma particularidade estrutural de um individuo que ela é inata, deixamos entender que ela é geneticamente condicionada e depende da hereditariedade biológica, ao mesmo título que as cores de cabelo e olhos. Entretanto é completamente excluído que um ser humano possa apresentar uma disposição natural inscrita nos seus genes correspondentes a algo de tão artificial como é a música mozartiana”. (Mozart: sociologie d´un genie, 1991,Paris, Seuil. p. 89)
Não se trata, como se vê, na argumentação de Elias, de negar a existência da realidade especifica dos determinantes genéticos, mas da impossibilidade de compatibilizá-los à natureza distinta do fenômeno, para com isso dar sentido a explicações biológicas de coisas pertencentes a ordens extra-biológicas. No caso analisado por Elias um objeto sócio-cultural como a música. É por isso que mais a diante no texto ele conclui:
“Se uma disposição biológica intervinha no seu imenso talento, ela não poderia ser outra coisa senão uma disposição extremamente genérica, e não especifica, e para a qual não teríamos nem mesmo conceitos adequados no estado atual das coisas”. (idem, p.90)
No caso de um objeto como a violência, onde algumas reações físico-quimicas parecem dar sustentação às explicações estritamente neurofisiológicas da violência, a relevância do principio da homogeneidade da argumentação científica me parece mais do que necessária para pensar o que se está em jogo nesses debates.
Acredito que, talvez, se a questão for apenas o dialogo que as duas disciplinas podem manter entre si mesmo sendo epistemologicamente heterogêneas, se possa tirar proveito da própria repercussão do caso do anúncio da pesquisa da PUC-RS. (http://www.apm.org.br/aberto/noticias_conteudo.aspx?id=5598)
As refutações que eu julgo inoperantes por não distinguirem o registro de asserção específico das ciências em questão são extremamente ilustrativas de como o dialogo poderia se estabelecer de maneira sadia para o desenvolvimento do saber científico. O fato de existir na sociologia uma larga e relevante experiência na construção de amostragem significativa de populações levando em conta aspectos relevantes contidos nas informações sociológicas produtoras de viés (classe, grupo, agrupamento etc.) faz com que seja possível a identificação de limites técnicos de amostragem (mesmo para fins de conhecimento de reações neurofisiológicas em indivíduos). O que não pode, é querer que o fenômeno social da violência, identificado e construído sociologicamente, seja negado ou explicado em nome de determinantes que por si sós, só conseguem se auto-justificar a si mesmas no domínio de asserção que lhes são próprias, o da ciência que lhes deu estatuto de realidade. É como querer, pelo contrário, que explicações em termos de legitimidade, ou socialização, expliquem a realidade “contextual” dos nossos códigos genéticos ou coisas dessa natureza. Parece-me, nos dois casos, lógicas absurdas.
Existe uma máxima metodológica no trabalho de Emile Durkheim que diz que um fato social só pode ser explicado por outro fato social. Enunciada num livro que tratava dos pressupostos pelos os quais o autor propunha os procedimentos e as disposições intelectuais necessárias para a produção de uma disciplina autônoma, a sociologia, tal requisito metodológico só ganhava plena força quando associado ao que ordenava tratar os fatos sociais como coisa.
Dito dessa forma, a região epistemológica da sociologia se confundiria facilmente com um empirismo ingênuo( que chamaremos aqui-acolá de empiricismo). Empiricismo que esquece que, como dizia Saussure, “o ponto de vista cria o objeto”. Seria injusto chamar Durkheim de empirista tosco, uma vez percebida a ênfase dada pelo autor de As formas elementares da vida religiosa ao principio de exterioridade como sendo um “tratar como”. Ele de fato defendia que o procedimento metodológico fundamental (aquele que garantia a objetividade especifica da sociologia) era também uma “atitude mental” que procura reter aspectos pertinentes do real que não poderiam ser tratados como entidades isoladas sem relações entre si.
Pois bem, feito esse breve preâmbulo de epistemologia da sociologia, gostaria de refletir sobre a possibilidade do estabelecimento concreto de dialogo entre disciplinas como a sociologia e a biologia, em especifico desta última o seu galho chamado neurociência. Instigado pelo interessante debate a respeito de uma pesquisa que busca formular hipóteses sobre os condicionantes neurofisiológicos da violência ( cf : http://www.idelberavelar.com/) ,volto-me para um debate clássico para explorar meu ponto de vista. A ruptura com a lógica da biologia é elemento constituinte da especificidade do tipo de raciocínio ao qual designamos de sociológico.
A questão que me faço é: o que está em jogo quando, por exemplo, queremos saber se existe ou não condicionantes neurofisiológicos para o fenômeno da violência? Se pusermos em par de “equidade epistemológica” a sociologia e as neurociências, se convimos que os dois tipos de ciência formulam seus objetos no mesmo espaço de asserção, é possível e aceitável que o debate a respeito da violência se dê em termos de questionamento sobre procedimentos técnicos de pesquisa (o que a meu ver, é recorrer a uma visão empiricista não condizente com o atual estatuto epistemológico de nenhuma ciência social), como por exemplo, explorar a deficiência ou qualidade da amostragem estatística(ver comentário de Marden Muller, cidato por César, na caixa de mensagens do Biscoito Fino). Por desconhecer às especificidades da neurociência, falo apenas do espaço assertivo da sociologia que, ao que parece, não entra no mesmo regime de verificação e prova (graças!) das ciências, digamos assim, mais popperianas. É nesse sentido que acho que o dialogo entre as duas disciplinas se dá em diferentes regimes de asserção onde o caráter ontológico da violência é situado de maneira diametralmente oposta em cada uma delas.
Trabalhando em analogia, pego um exemplo dessa lógica numa obra de Norbert Elias, Mozart: sociologie d´un genie. Trata-se da afirmação do principio durkheimiano da explicação do fato social pelo fato social. Lidando com as explicações correntes da obra de Mozart ele reage da maneira seguinte às idéias de “gênio nato” e de “dom nato da composição”:
“ Dizendo de uma particularidade estrutural de um individuo que ela é inata, deixamos entender que ela é geneticamente condicionada e depende da hereditariedade biológica, ao mesmo título que as cores de cabelo e olhos. Entretanto é completamente excluído que um ser humano possa apresentar uma disposição natural inscrita nos seus genes correspondentes a algo de tão artificial como é a música mozartiana”. (Mozart: sociologie d´un genie, 1991,Paris, Seuil. p. 89)
Não se trata, como se vê, na argumentação de Elias, de negar a existência da realidade especifica dos determinantes genéticos, mas da impossibilidade de compatibilizá-los à natureza distinta do fenômeno, para com isso dar sentido a explicações biológicas de coisas pertencentes a ordens extra-biológicas. No caso analisado por Elias um objeto sócio-cultural como a música. É por isso que mais a diante no texto ele conclui:
“Se uma disposição biológica intervinha no seu imenso talento, ela não poderia ser outra coisa senão uma disposição extremamente genérica, e não especifica, e para a qual não teríamos nem mesmo conceitos adequados no estado atual das coisas”. (idem, p.90)
No caso de um objeto como a violência, onde algumas reações físico-quimicas parecem dar sustentação às explicações estritamente neurofisiológicas da violência, a relevância do principio da homogeneidade da argumentação científica me parece mais do que necessária para pensar o que se está em jogo nesses debates.
Acredito que, talvez, se a questão for apenas o dialogo que as duas disciplinas podem manter entre si mesmo sendo epistemologicamente heterogêneas, se possa tirar proveito da própria repercussão do caso do anúncio da pesquisa da PUC-RS. (http://www.apm.org.br/aberto/noticias_conteudo.aspx?id=5598)
As refutações que eu julgo inoperantes por não distinguirem o registro de asserção específico das ciências em questão são extremamente ilustrativas de como o dialogo poderia se estabelecer de maneira sadia para o desenvolvimento do saber científico. O fato de existir na sociologia uma larga e relevante experiência na construção de amostragem significativa de populações levando em conta aspectos relevantes contidos nas informações sociológicas produtoras de viés (classe, grupo, agrupamento etc.) faz com que seja possível a identificação de limites técnicos de amostragem (mesmo para fins de conhecimento de reações neurofisiológicas em indivíduos). O que não pode, é querer que o fenômeno social da violência, identificado e construído sociologicamente, seja negado ou explicado em nome de determinantes que por si sós, só conseguem se auto-justificar a si mesmas no domínio de asserção que lhes são próprias, o da ciência que lhes deu estatuto de realidade. É como querer, pelo contrário, que explicações em termos de legitimidade, ou socialização, expliquem a realidade “contextual” dos nossos códigos genéticos ou coisas dessa natureza. Parece-me, nos dois casos, lógicas absurdas.
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