Participei como platéia do encontro chamado Pré-ALAS. O ALAS é o congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia que ocorrerá ano que vem no Rio de Janeiro. O evento que se realizou entre 03 e 05 de novembro aqui no Recife tinha como objetivo ser uma espécie de aperitivo ao congresso maior que estar por vir.
Vi pouco e não poderia emitir uma opinião mais ampliada sobre o evento como um todo. Mas gostaria de tecer comentário sobre três atividades as quais tive acesso. A mesa redonda “Uma agenda para os estudos sobre crime e violência no século XXI”(04/11/08, das 8 ao meio dia no auditório do CCSA), o grupo de trabalho (GT) “Pensamento Social na América Latina” (04/11/08, 14 às 17 horas no CFCH) e por último a mesa redonda “Democracia, desigualdade, participação e novos atores na América Latina” (05/11/08, 8 ao meio dia no Centro de Educação).
Opinião sobre mesa redonda sobre crime e violência: agenda social, agenda sociológica
Na mesa redonda sobre a agenda de estudos sobre crime e violência o que mais me impressionou foi perceber o vínculo intervencionista das preocupações das possíveis “agendas científicas”. Se as ciências sociais surgem historicamente em parte por conta do volume e densidade que as sociedades industriais deram à morfologia de suas cidades, e o sem número de fenômenos sociais que vão aparecer em decorrência disso, não deixa de ser interessante perceber o quanto uma idéia de “medicina social” (conhecer para intervir e sanar problemas) permeia os objetivos das agendas ali propostas. Nada contra.
Mas é interessante porque perigoso, eu acrescentaria. Essa definição de agendas nos moldes da relação de heterônomia entre sociologia e política pública de segurança define contornos políticos (na verdade sociais) à agenda científica que passa a pensar seus objetos em função de ideais de diminuição das taxas de criminalidade e violência. Mais uma vez, nada contra o uso do conhecimento sociológico nas agendas políticas dos políticos e governantes. Porém é preciso convir, é preciso ter preocupação com a ciência e sua função específica principal cujo a qual, creio eu, ainda ser aquela de produzir conhecimento sobre as lógicas de funcionamento do mundo social.
Se esse meu receio for real, ou seja, se for verdade que aquelas proposições de agendas de estudo foram estruturadas apenas em função de vínculos com a demanda pública por segurança, numa situação como essa descrita, parece-me que é factível aceitar o declínio da distinção instituinte e instrutiva dada pela própria sociologia entre um problema social e um sociológico. Aparecendo de maneira dissolvida nos moldes para lá de perniciosos dessa razão sociológica (uma sociologia aparentemente desprovida de sua função latente), a sociologia do crime visa encontrar soluções para o crime e para violência (criminologia) sem muitas vezes se ater ao entendimento das lógicas, mecanismos, formas de funcionamento do mundo social que engendram “situações de violência”, “formação de criminosos”, “culturas do crime” etc. Estuda-se polícia, estudam-se políticas de segurança (e querem se estudar seus impactos, onde?, na diminuição ou não das taxas disso e daquilo), mas, e isso me intriga, estudar o caldo sócio-cultural que estrutura essa agenda parece não interessar ninguém. É démodé. Podem me chamar de leigo e conservador, de desconhecer as teorias da janela quebrada ou de suas semelhantes, mas fazer sociologia para mim sem falar sistematicamente de aspectos de socialização sempre vai me parecer algo como fazer bolo de trigo sem colocar margarina: produz algo seco, ruim de digerir e, last but not least, não parece bolo.
Jessé Souza: discurso inaudível, sociologia morta e seus diálogos sem interlocutores
O principal personagem do grupo de trabalho sobre “Pensamento Social na América Latina” e da mesa redonda sobre democracia e desigualdade tem nome: Jessé Souza. Primeiro por fazer uma exposição crítica à idéia de pensamento social num grupo sobre pensamento social. E depois por defender idéias fortes como é a de ralé estrutural, que por sua vez reveste uma crítica por si só já instigante, onde elementos culturais fortemente presentes e aceitos como sendo parte de nossa brasilidade são colocados como elementos de um “mito do Brasil” a ser triturado pela ciência.
O que achei extremamente interessante nos dois momentos foi a impossibilidade de comunicar que se externalizava na hexis corporal de Jessé Souza ao expor, sempre com muita clareza e destreza, o seu pensamento crítico. O suor, os suspiros de impaciência com apresentações que reproduziam contextualizações teóricas de pensamentos teóricos, traduziam o apelo da consciência de alguém que sabia estar falando para um auditório onde os principais interlocutores (os integrantes da mesa) eram surdos ao que ele dizia.
O problema é que se por um lado Jessé Souza tem toda a razão de se colocar da maneira que se colocou(dando argumento-patada em todos), o limite de sua postura está, a meu ver, na pouca ênfase dada às propriedades sociológicas de seu discurso sociológico. Aceitando discutir os resultados teóricos de seu estudo sobre a ralé estrutural como mais uma teoria sobre o mundo social, perde-se de vista o essêncial de sua crítica, caindo-se assim no mesmo equivoco que torna inaudível a especificidade do discurso que deu vazão a produção dessa teoria: ou seja, o sociológico (Jessé de Souza) não enfatizando que é com sua maneira de investigar que ele produz crítica, ou seja, através de seus métodos, seus recursos técnicos de pesquisa – entrevistas, análise estatística, análise de documentos, uso de conceitos, etc. –, ele perde a oportunidade de interar e fazer entender que a verdade e não apenas a veracidade de suas proposições depende do bom uso desses procedimentos.
Nesse sentido acho típicas as exemplificações de alguns elementos de pesquisas dados durante a sua exposição. A mais característica sendo a que visa explicar a tendência ao fracasso escolar de alunos oriundos da ralé. A capacidade de concentração é algo que se aprende, diz Jessé Souza. Ele acrescenta depois de forma imagética que as pessoas de classe média, quando na idade escolar aprenderam a se concentrar em casa, vendo seus pais lendo jornais e livros, descobrindo a concentração como algo possível.
(O que vou dizer agora pode ser uma injustiça produzida pela temporalidade limitada de uma apresentação de meia hora num evento como o que comento. Mas julgo da pertinência dessa crítica por não ter percebido em nenhum momento uma preocupação que levasse o debate para esse ponto que trato.)
Pois bem, Jessé usa nesse exemplo sobre a concentração um argumento estruturado dentro de uma lógica bourdieusiana do A Reprodução. Parênteses para dizer que esse é um livro aparentemente mal lido no Brasil tendo em vista as acusações tolas de estruturalismo que detêm tanto o interesse de nossos debates acadêmicos. Nesse argumento a inteligibilidade do fenômeno da “burrice” (dos não atentos em sala de aula) aparece quando se sobrepõe (depois de descrições muito detalhadas no caso das pesquisas que deram origem ao livro de Bourdieu e Passeron) a congruência ideologicamente camuflada das estruturas da cultura dominante (porque legitima, a ecolar) e a da classe dominante ( a cultura das famílias mais abastadas sociocultural e economicamente). Até aqui tudo bem.
Na mesa redonda sobre a agenda de estudos sobre crime e violência o que mais me impressionou foi perceber o vínculo intervencionista das preocupações das possíveis “agendas científicas”. Se as ciências sociais surgem historicamente em parte por conta do volume e densidade que as sociedades industriais deram à morfologia de suas cidades, e o sem número de fenômenos sociais que vão aparecer em decorrência disso, não deixa de ser interessante perceber o quanto uma idéia de “medicina social” (conhecer para intervir e sanar problemas) permeia os objetivos das agendas ali propostas. Nada contra.
Mas é interessante porque perigoso, eu acrescentaria. Essa definição de agendas nos moldes da relação de heterônomia entre sociologia e política pública de segurança define contornos políticos (na verdade sociais) à agenda científica que passa a pensar seus objetos em função de ideais de diminuição das taxas de criminalidade e violência. Mais uma vez, nada contra o uso do conhecimento sociológico nas agendas políticas dos políticos e governantes. Porém é preciso convir, é preciso ter preocupação com a ciência e sua função específica principal cujo a qual, creio eu, ainda ser aquela de produzir conhecimento sobre as lógicas de funcionamento do mundo social.
Se esse meu receio for real, ou seja, se for verdade que aquelas proposições de agendas de estudo foram estruturadas apenas em função de vínculos com a demanda pública por segurança, numa situação como essa descrita, parece-me que é factível aceitar o declínio da distinção instituinte e instrutiva dada pela própria sociologia entre um problema social e um sociológico. Aparecendo de maneira dissolvida nos moldes para lá de perniciosos dessa razão sociológica (uma sociologia aparentemente desprovida de sua função latente), a sociologia do crime visa encontrar soluções para o crime e para violência (criminologia) sem muitas vezes se ater ao entendimento das lógicas, mecanismos, formas de funcionamento do mundo social que engendram “situações de violência”, “formação de criminosos”, “culturas do crime” etc. Estuda-se polícia, estudam-se políticas de segurança (e querem se estudar seus impactos, onde?, na diminuição ou não das taxas disso e daquilo), mas, e isso me intriga, estudar o caldo sócio-cultural que estrutura essa agenda parece não interessar ninguém. É démodé. Podem me chamar de leigo e conservador, de desconhecer as teorias da janela quebrada ou de suas semelhantes, mas fazer sociologia para mim sem falar sistematicamente de aspectos de socialização sempre vai me parecer algo como fazer bolo de trigo sem colocar margarina: produz algo seco, ruim de digerir e, last but not least, não parece bolo.
Jessé Souza: discurso inaudível, sociologia morta e seus diálogos sem interlocutores
O principal personagem do grupo de trabalho sobre “Pensamento Social na América Latina” e da mesa redonda sobre democracia e desigualdade tem nome: Jessé Souza. Primeiro por fazer uma exposição crítica à idéia de pensamento social num grupo sobre pensamento social. E depois por defender idéias fortes como é a de ralé estrutural, que por sua vez reveste uma crítica por si só já instigante, onde elementos culturais fortemente presentes e aceitos como sendo parte de nossa brasilidade são colocados como elementos de um “mito do Brasil” a ser triturado pela ciência.
O que achei extremamente interessante nos dois momentos foi a impossibilidade de comunicar que se externalizava na hexis corporal de Jessé Souza ao expor, sempre com muita clareza e destreza, o seu pensamento crítico. O suor, os suspiros de impaciência com apresentações que reproduziam contextualizações teóricas de pensamentos teóricos, traduziam o apelo da consciência de alguém que sabia estar falando para um auditório onde os principais interlocutores (os integrantes da mesa) eram surdos ao que ele dizia.
O problema é que se por um lado Jessé Souza tem toda a razão de se colocar da maneira que se colocou(dando argumento-patada em todos), o limite de sua postura está, a meu ver, na pouca ênfase dada às propriedades sociológicas de seu discurso sociológico. Aceitando discutir os resultados teóricos de seu estudo sobre a ralé estrutural como mais uma teoria sobre o mundo social, perde-se de vista o essêncial de sua crítica, caindo-se assim no mesmo equivoco que torna inaudível a especificidade do discurso que deu vazão a produção dessa teoria: ou seja, o sociológico (Jessé de Souza) não enfatizando que é com sua maneira de investigar que ele produz crítica, ou seja, através de seus métodos, seus recursos técnicos de pesquisa – entrevistas, análise estatística, análise de documentos, uso de conceitos, etc. –, ele perde a oportunidade de interar e fazer entender que a verdade e não apenas a veracidade de suas proposições depende do bom uso desses procedimentos.
Nesse sentido acho típicas as exemplificações de alguns elementos de pesquisas dados durante a sua exposição. A mais característica sendo a que visa explicar a tendência ao fracasso escolar de alunos oriundos da ralé. A capacidade de concentração é algo que se aprende, diz Jessé Souza. Ele acrescenta depois de forma imagética que as pessoas de classe média, quando na idade escolar aprenderam a se concentrar em casa, vendo seus pais lendo jornais e livros, descobrindo a concentração como algo possível.
(O que vou dizer agora pode ser uma injustiça produzida pela temporalidade limitada de uma apresentação de meia hora num evento como o que comento. Mas julgo da pertinência dessa crítica por não ter percebido em nenhum momento uma preocupação que levasse o debate para esse ponto que trato.)
Pois bem, Jessé usa nesse exemplo sobre a concentração um argumento estruturado dentro de uma lógica bourdieusiana do A Reprodução. Parênteses para dizer que esse é um livro aparentemente mal lido no Brasil tendo em vista as acusações tolas de estruturalismo que detêm tanto o interesse de nossos debates acadêmicos. Nesse argumento a inteligibilidade do fenômeno da “burrice” (dos não atentos em sala de aula) aparece quando se sobrepõe (depois de descrições muito detalhadas no caso das pesquisas que deram origem ao livro de Bourdieu e Passeron) a congruência ideologicamente camuflada das estruturas da cultura dominante (porque legitima, a ecolar) e a da classe dominante ( a cultura das famílias mais abastadas sociocultural e economicamente). Até aqui tudo bem.
O problema é que se você omite, como tende também a fazer Jessé Souza, a importância da análise estatística, da etnografia que descreve as relações de aprendizado no seio familiar e escolar, da construção de uma relação específica no uso dos conceitos para a construção de um argumento sociológico interpretando essa base material (por que usar a estatística para “explicar” ou dar “conformidade” ao dito real que a teoria trata?), você acaba por ratificar as “razões da inaudibilidade” do seu discurso. Por isso minha simpatia pelo discurso de Jessé Souza é grande, mas parece esbarrar naquilo que ele critica só até certo ponto, seu vínculo com uma maneira de refutar e conjecturar sobre o mundo social vinculada ao modo de operar do pensamento social.
Atualização: coloco abaixo o texto de Diogo Valença que trata das impressões dele do evento. O texto está nos comentários, mas julguei que ele ilustra bem e dá uma perspectiva a mais (mais completa) ao que disse e "de coup" que era de interesse da maioria.
Jessé Souza e a arrogância da "grande teoria" (por Diogo Valença)
Gostaria de tecer um rápido comentário às impressões do meu amigo Jampa sobre o Pré-ALAS. Primeiro, queria fazer um reparo. O próximo ALAS não será no Rio de Janeiro, mas em Buenos Aires. Quanto à mesa sobre criminalidade, gostei da visão crítica de Jampa e tendo a concordar com o cuidado que ele teve na defesa da especificidade do ponto de vista sociológico. Ele não desconsidera ser legítima a preocupação prática na sociologia, mas tenta colocar as balizas norteadoras desse intento. Como envolver a sociologia em problemas práticos? Eu acho que isso pode ser feito, mas deve ser feito dentro da contribuição que à sociologia pode dar ao conhecimento sobre o mundo social, ou então a sociologia não servirá de nada. Foi assim que entendi o comentário crítico de Jampa. Porém, eu acho que há toda uma discussão na sociologia, que está meio esquecida, sobre a possibilidade de unir o raciocínio pragmático ao raciocínio científico, numa espécie de sociologia aplicada, para usar uma expressão tão cara a Florestan Fernandes. Seria a idéia de que o sociólogo pode atuar nos processos de intervenção social, a partir do prisma de sua especialidade científica, e ao mesmo tempo ser um agente político de transformação. Isso implica, de certo modo, união entre fato e valor no próprio terreno da ciência. Haveria várias perguntas aí, é claro, sobre qual a direção da mudança, a quem interessa essa intervenção social, que cabe à análise sociológica desvendar. Acho que só em processos de intervenção social, nos quais os sociólogos venham a participar, é que essas questões podem ser respondidas e não adianta nada conjecturar sobre isso. Mas acho importante o questionamento de Jampa e esses comentários que agora fiz desejo que sejam vistos apenas como um acréscimo das minhas posições às palavras do amigo.(Continua...)
Jessé Souza (comentário)Eu também estive presente na apresentação de Jessé Souza no GT Pensamento Social Latino-Americano. Como Jampa, reconheço que Jessé está fazendo um trabalho importante de investigador e simpatizo com as críticas radicais que ele tem feito a vários dos mitos do pensamento social brasileiro. No entanto, o que mais me chamou a atenção na postura dele foi um enorme desconhecimento de toda uma tradição de pensamento desenvolvida na América Latina, não só por cientistas sociais, mas também por pensadores políticos, como Mariátegui, que construíram uma visão original de nossas formações sociais. O que estava em jogo no GT "pensamento social latino-americano", a meu ver, era exatamente isso. Esses autores não são importantes para Jessé porque ele considera que a grande teoria, mais "complexa" (termo que ele utilizou), desenvolvida na Europa, pode dar conta de nossos fenômenos sociais, brasileiros e latino-americanos. Por isso ele não vai ler autores latino-americanos e sim pegar os autores verdadeiramente complexos. Ora, Jessé é um leitor atento de Bourdieu, como bem apontou Jampa, e sabemos que Bourdieu foi um sociólogo que refletia teoricamente a partir de seus objetos de investigação, realizando uma verdadeira construção conceitual na sociologia a partir de elementos concretos, numa simbiose marcante entre teoria e empiria. A meu ver, esse é o verdadeiro caminho na teorização das ciências sociais. Por isso Bourdieu tinha uma forte aversão à grande teoria à la Parsons, ou mesmo à teoria de médio alcance de um Merton. Acho que nesse ponto Jessé não aprendeu a lição do mestre, porque ele deixa de ter a visão da especificidade do concreto quando tenta retirar de Foucault, por exemplo, que ele citou, elementos para entender o poder nas instituições modernas e aplicar esses conceitos ao Brasil. Ele diz, com razão, que o Brasil é uma nação "moderna" e, por isso, a teorização construída na Europa também nos cabe. Nisso estou de acordo, porém se há problemas universais das nações modernas, há problemas específicos de cada uma das nações modernas quando lidamos com as diferenças de suas origens históricas. Isso já é muito sabido e não vou discutir algo que já foi tão debatido pelos cientistas sociais latino-americanos desde os anos 60. Acho que Jessé pensa estar fazendo algo totalmente novo e desconsiderando que a perspectiva de interpretação global que ele tenta levar adiante, criticando o culturalismo e tentando realizar a ponte entre cultura e estrutura, foi algo muito desenvolvido nas ciências sociais latino-americanas a partir de investigações muito concretas, como as de Pablo González Casanova, Anibal Quijano, Orlando Fals Borda, Florestan Fernandes e vários outros. O que ele fez foi algo típico da grande teoria, achar que pode explicar tudo e todos os casos concretos. Penso que na sua prática de pesquisador Jessé possa ter superado essa visão, que, a meu ver, é um índice de colonialismo mental. Basta estudarmos a teoria altamente complexa dos centros hegemônicos de produção cultural e, pronto, seremos capazes de lidar com qualquer problema empírico do Brasil, ou da África, ou da Ásia. Não acredito que esse seja o caminho, porque seria descontextualizar teorias importantes, mas que levam a marca de seu meio social e colocam questões que muitas vezes não podem ter muito sentido para nós. É uma forma de perpetuar relações de dominação que se dão no âmbito internacional dentro da reflexão sociológica. Não sei se Jampa notou, mas muitas vezes Jessé demonstrava estar fazendo algo totalmente novo, inventando a roda e desconsiderando toda uma produção importante feita anteriormente que, em muitos aspectos, foi mais longe do que ele conseguiu, com um "grau menor de complexidade", porque os cientistas sociais latino-americanos foram capazes de superar o complexo de inferioridade do cultivo da "grande teoria" na periferia. Foram cientistas sociais que não tinham as grandes ambições teóricas de Jessé, mas que realizaram estudos concretos da realidade concreta e, por conta disso, deram uma contribuição muito importante à teoria geral, por exemplo, do capitalismo, que tem sido reaproveitada na análise global do capitalismo. É marcante, por exemplo, como Florestan Fernandes apontou certas tendências do capitalismo mundial a partir das análises que ele fez do capitalismo dependente na periferia e, sem o tom arrogante da grande teoria, ele deu uma contribuição muito original a partir de suas pesquisas concretas. Esses comentários nada tendem a desmerecer o trabalho de Jessé, porém acho que há contradições entre seu talento de pesquisador e a sedução que ele sofre pela grande teoria, daí o tom arrogante de achar que ele está fazendo algo totalmente inédito. Sob esse prisma, eu acho que ele não conseguiu fazer uma crítica do pensamento social latino-americano, fez a crítica apenas de uma das vertentes desse pensamento, que ele chama de culturalista, e desconhece outros trabalhos que seriam dignos de nota. Penso que ele não deve ter cuidado para acabar no exercício escolástico de aplicar ao Brasil os o comentário de obras dos autores mais complexos que ele leu e que produziram em outros contextos sociais...
Jessé Souza (comentário)Eu também estive presente na apresentação de Jessé Souza no GT Pensamento Social Latino-Americano. Como Jampa, reconheço que Jessé está fazendo um trabalho importante de investigador e simpatizo com as críticas radicais que ele tem feito a vários dos mitos do pensamento social brasileiro. No entanto, o que mais me chamou a atenção na postura dele foi um enorme desconhecimento de toda uma tradição de pensamento desenvolvida na América Latina, não só por cientistas sociais, mas também por pensadores políticos, como Mariátegui, que construíram uma visão original de nossas formações sociais. O que estava em jogo no GT "pensamento social latino-americano", a meu ver, era exatamente isso. Esses autores não são importantes para Jessé porque ele considera que a grande teoria, mais "complexa" (termo que ele utilizou), desenvolvida na Europa, pode dar conta de nossos fenômenos sociais, brasileiros e latino-americanos. Por isso ele não vai ler autores latino-americanos e sim pegar os autores verdadeiramente complexos. Ora, Jessé é um leitor atento de Bourdieu, como bem apontou Jampa, e sabemos que Bourdieu foi um sociólogo que refletia teoricamente a partir de seus objetos de investigação, realizando uma verdadeira construção conceitual na sociologia a partir de elementos concretos, numa simbiose marcante entre teoria e empiria. A meu ver, esse é o verdadeiro caminho na teorização das ciências sociais. Por isso Bourdieu tinha uma forte aversão à grande teoria à la Parsons, ou mesmo à teoria de médio alcance de um Merton. Acho que nesse ponto Jessé não aprendeu a lição do mestre, porque ele deixa de ter a visão da especificidade do concreto quando tenta retirar de Foucault, por exemplo, que ele citou, elementos para entender o poder nas instituições modernas e aplicar esses conceitos ao Brasil. Ele diz, com razão, que o Brasil é uma nação "moderna" e, por isso, a teorização construída na Europa também nos cabe. Nisso estou de acordo, porém se há problemas universais das nações modernas, há problemas específicos de cada uma das nações modernas quando lidamos com as diferenças de suas origens históricas. Isso já é muito sabido e não vou discutir algo que já foi tão debatido pelos cientistas sociais latino-americanos desde os anos 60. Acho que Jessé pensa estar fazendo algo totalmente novo e desconsiderando que a perspectiva de interpretação global que ele tenta levar adiante, criticando o culturalismo e tentando realizar a ponte entre cultura e estrutura, foi algo muito desenvolvido nas ciências sociais latino-americanas a partir de investigações muito concretas, como as de Pablo González Casanova, Anibal Quijano, Orlando Fals Borda, Florestan Fernandes e vários outros. O que ele fez foi algo típico da grande teoria, achar que pode explicar tudo e todos os casos concretos. Penso que na sua prática de pesquisador Jessé possa ter superado essa visão, que, a meu ver, é um índice de colonialismo mental. Basta estudarmos a teoria altamente complexa dos centros hegemônicos de produção cultural e, pronto, seremos capazes de lidar com qualquer problema empírico do Brasil, ou da África, ou da Ásia. Não acredito que esse seja o caminho, porque seria descontextualizar teorias importantes, mas que levam a marca de seu meio social e colocam questões que muitas vezes não podem ter muito sentido para nós. É uma forma de perpetuar relações de dominação que se dão no âmbito internacional dentro da reflexão sociológica. Não sei se Jampa notou, mas muitas vezes Jessé demonstrava estar fazendo algo totalmente novo, inventando a roda e desconsiderando toda uma produção importante feita anteriormente que, em muitos aspectos, foi mais longe do que ele conseguiu, com um "grau menor de complexidade", porque os cientistas sociais latino-americanos foram capazes de superar o complexo de inferioridade do cultivo da "grande teoria" na periferia. Foram cientistas sociais que não tinham as grandes ambições teóricas de Jessé, mas que realizaram estudos concretos da realidade concreta e, por conta disso, deram uma contribuição muito importante à teoria geral, por exemplo, do capitalismo, que tem sido reaproveitada na análise global do capitalismo. É marcante, por exemplo, como Florestan Fernandes apontou certas tendências do capitalismo mundial a partir das análises que ele fez do capitalismo dependente na periferia e, sem o tom arrogante da grande teoria, ele deu uma contribuição muito original a partir de suas pesquisas concretas. Esses comentários nada tendem a desmerecer o trabalho de Jessé, porém acho que há contradições entre seu talento de pesquisador e a sedução que ele sofre pela grande teoria, daí o tom arrogante de achar que ele está fazendo algo totalmente inédito. Sob esse prisma, eu acho que ele não conseguiu fazer uma crítica do pensamento social latino-americano, fez a crítica apenas de uma das vertentes desse pensamento, que ele chama de culturalista, e desconhece outros trabalhos que seriam dignos de nota. Penso que ele não deve ter cuidado para acabar no exercício escolástico de aplicar ao Brasil os o comentário de obras dos autores mais complexos que ele leu e que produziram em outros contextos sociais...
3 comentários:
Jessé Souza e a arrogância da "grande teoria" (por Diogo Valença)
Gostaria de tecer um rápido comentário às impressões do meu amigo Jampa sobre o Pré-ALAS. Primeiro, queria fazer um reparo. O próximo ALAS não será no Rio de Janeiro, mas em Buenos Aires. Quanto à mesa sobre criminalidade, gostei da visão crítica de Jampa e tendo a concordar com o cuidado que ele teve na defesa da especificidade do ponto de vista sociológico. Ele não desconsidera ser legítima a preocupação prática na sociologia, mas tenta colocar as balizas norteadoras desse intento. Como envolver a sociologia em problemas práticos? Eu acho que isso pode ser feito, mas deve ser feito dentro da contribuição que à sociologia pode dar ao conhecimento sobre o mundo social, ou então a sociologia não servirá de nada. Foi assim que entendi o comentário crítico de Jampa. Porém, eu acho que há toda uma discussão na sociologia, que está meio esquecida, sobre a possibilidade de unir o raciocínio pragmático ao raciocínio científico, numa espécie de sociologia aplicada, para usar uma expressão tão cara a Florestan Fernandes. Seria a idéia de que o sociólogo pode atuar nos processos de intervenção social, a partir do prisma de sua especialidade científica, e ao mesmo tempo ser um agente político de transformação. Isso implica, de certo modo, união entre fato e valor no próprio terreno da ciência. Haveria várias perguntas aí, é claro, sobre qual a direção da mudança, a quem interessa essa intervenção social, que cabe à análise sociológica desvendar. Acho que só em processos de intervenção social, nos quais os sociólogos venham a participar, é que essas questões podem ser respondidas e não adianta nada conjecturar sobre isso. Mas acho importante o questionamento de Jampa e esses comentários que agora fiz desejo que sejam vistos apenas como um acréscimo das minhas posições às palavras do amigo.
(Continua...)
Jessé Souza (comentário)
Eu também estive presente na apresentação de Jessé Souza no GT Pensamento Social Latino-Americano. Como Jampa, reconheço que Jessé está fazendo um trabalho importante de investigador e simpatizo com as críticas radicais que ele tem feito a vários dos mitos do pensamento social brasileiro. No entanto, o que mais me chamou a atenção na postura dele foi um enorme desconhecimento de toda uma tradição de pensamento desenvolvida na América Latina, não só por cientistas sociais, mas também por pensadores políticos, como Mariátegui, que construíram uma visão original de nossas formações sociais. O que estava em jogo no GT "pensamento social latino-americano", a meu ver, era exatamente isso. Esses autores não são importantes para Jessé porque ele considera que a grande teoria, mais "complexa" (termo que ele utilizou), desenvolvida na Europa, pode dar conta de nossos fenômenos sociais, brasileiros e latino-americanos. Por isso ele não vai ler autores latino-americanos e sim pegar os autores verdadeiramente complexos. Ora, Jessé é um leitor atento de Bourdieu, como bem apontou Jampa, e sabemos que Bourdieu foi um sociólogo que refletia teoricamente a partir de seus objetos de investigação, realizando uma verdadeira construção conceitual na sociologia a partir de elementos concretos, numa simbiose marcante entre teoria e empiria. A meu ver, esse é o verdadeiro caminho na teorização das ciências sociais. Por isso Bourdieu tinha uma forte aversão à grande teoria à la Parsons, ou mesmo à teoria de médio alcance de um Merton. Acho que nesse ponto Jessé não aprendeu a lição do mestre, porque ele deixa de ter a visão da especificidade do concreto quando tenta retirar de Foucault, por exemplo, que ele citou, elementos para entender o poder nas instituições modernas e aplicar esses conceitos ao Brasil. Ele diz, com razão, que o Brasil é uma nação "moderna" e, por isso, a teorização construída na Europa também nos cabe. Nisso estou de acordo, porém se há problemas universais das nações modernas, há problemas específicos de cada uma das nações modernas quando lidamos com as diferenças de suas origens históricas. Isso já é muito sabido e não vou discutir algo que já foi tão debatido pelos cientistas sociais latino-americanos desde os anos 60. Acho que Jessé pensa estar fazendo algo totalmente novo e desconsiderando que a perspectiva de interpretação global que ele tenta levar adiante, criticando o culturalismo e tentando realizar a ponte entre cultura e estrutura, foi algo muito desenvolvido nas ciências sociais latino-americanas a partir de investigações muito concretas, como as de Pablo González Casanova, Anibal Quijano, Orlando Fals Borda, Florestan Fernandes e vários outros. O que ele fez foi algo típico da grande teoria, achar que pode explicar tudo e todos os casos concretos. Penso que na sua prática de pesquisador Jessé possa ter superado essa visão, que, a meu ver, é um índice de colonialismo mental. Basta estudarmos a teoria altamente complexa dos centros hegemônicos de produção cultural e, pronto, seremos capazes de lidar com qualquer problema empírico do Brasil, ou da África, ou da Ásia. Não acredito que esse seja o caminho, porque seria descontextualizar teorias importantes, mas que levam a marca de seu meio social e colocam questões que muitas vezes não podem ter muito sentido para nós. É uma forma de perpetuar relações de dominação que se dão no âmbito internacional dentro da reflexão sociológica. Não sei se Jampa notou, mas muitas vezes Jessé demonstrava estar fazendo algo totalmente novo, inventando a roda e desconsiderando toda uma produção importante feita anteriormente que, em muitos aspectos, foi mais longe do que ele conseguiu, com um "grau menor de complexidade", porque os cientistas sociais latino-americanos foram capazes de superar o complexo de inferioridade do cultivo da "grande teoria" na periferia. Foram cientistas sociais que não tinham as grandes ambições teóricas de Jessé, mas que realizaram estudos concretos da realidade concreta e, por conta disso, deram uma contribuição muito importante à teoria geral, por exemplo, do capitalismo, que tem sido reaproveitada na análise global do capitalismo. É marcante, por exemplo, como Florestan Fernandes apontou certas tendências do capitalismo mundial a partir das análises que ele fez do capitalismo dependente na periferia e, sem o tom arrogante da grande teoria, ele deu uma contribuição muito original a partir de suas pesquisas concretas. Esses comentários nada tendem a desmerecer o trabalho de Jessé, porém acho que há contradições entre seu talento de pesquisador e a sedução que ele sofre pela grande teoria, daí o tom arrogante de achar que ele está fazendo algo totalmente inédito. Sob esse prisma, eu acho que ele não conseguiu fazer uma crítica do pensamento social latino-americano, fez a crítica apenas de uma das vertentes desse pensamento, que ele chama de culturalista, e desconhece outros trabalhos que seriam dignos de nota. Penso que ele não deve ter cuidado para acabar no exercício escolástico de aplicar ao Brasil os o comentário de obras dos autores mais complexos que ele leu e que produziram em outros contextos sociais...
Pessoal
obrigado pelo relato sobre o Pré-Alas.
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