terça-feira, março 24, 2009

Um texto publicado

Aqui vai um texto de Clarissa Diniz co-escrito por mim que foi publicado ano passado num livro chamado "Souzousareta Geijutsuka". O toque sociológico do texto, que busca entender os mecanismos de desvelamento das lógicas de legitimação encontradas no experimento (explicação aqui ) do artista Yuri Firmeza ( resuminho aqui) são bem interessantes. Espero que gostem. Por não ser sociologia em sentido estreito (a que eu gosto), hesitei um tempinho em colocar no meu currículo (de sociólogo). Pressionado, terminei cedendo.



Firmeza: historieta da contradição legitimadora





As lógicas de legitimação são a um só tempo objeto e sujeito da obra de Yuri Firmeza. Objeto porque é disso que trata seu trabalho, sujeito porque seu trabalho é isso - o debate acerca das lógicas legitimadoras através delas mesmas. Ao falar de através de, o artista faz ver - claramente - o quanto os objetos são constituídos não somente de suas matérias específicas, mas, mormente, dos mecanismos de agenciamento dessas matérias.


Com Souzousareta Geijutsuka, interessa a Firmeza demonstrar o quanto, no contexto do sistema de arte, uma obra é, em grande parte, o conjunto de conceitos e verdades socialmente construídas acerca dela. Souzousareta, por exemplo, era menos suas obras (representadas apenas por poucas fotografias) do que seu currículo - o fato de já ter supostamente exposto quatro vezes no Brasil, bem como em Tóquio e Nova Iorque: grandes centros produtores e corroboradores da arte internacional.


Assim, consciente dessas lógicas, Yuri desenvolveu uma ação que visava revelá-las, apostando em seu desvelamento como forma de crítica às práticas excessivamente sociais de arte que, prioritariamente interessadas nas legitimidades das obras com as quais lidam, por vezes negligenciam outros aspectos - habitualmente menos sistêmicos e, quem sabe, mais transcendentais- das mesmas. Ainda que a ênfase da sua crítica estivesse na mídia, sua atitude pode ser estendida a todas as instâncias legitimadoras da produção de arte ( a crítica, curadoria, instituições, mercado, público, entre outras) que, agentes dos processos de construção de reputações e validades sociais, são, na maior parte das vezes- como demonstrou a imprensa cearense-, meros instrumentos desse processo: de algum modo, Yuri fez ver que nós, produtores de legitimidades, somos mais manipulados por tais legitimidades do que de fato as manipulamos.


Também o artista, na dinâmica condição de ser- como todos- simultaneamente produto e produtor do sistema de disputa por legitimidade, dele não se desvia. Ainda que sua obra tenha - ao expor a fragilidade (ou mesmo a falsidade) do processo de construção da verdade midiática - colocado em xeque os jornais de Fortaleza, ela, contudo, não se desvencilhou desses mesmos processos. A partir de uma mentira legítima, Yuri, por sua vez, foi legitimado diante não só da imprensa, como do público, da crítica, etc. E mais: foi legitimado como um questionador das legitimações.


Tal qual sua obra - ao mesmo tempo sujeito e objeto de seu "tema" -, o artista, ao criticar a vulnerabilidade de nosso sistema de arte, foi corroborado por efeito reverso de tal susceptilidade: não fosse a imprensa tão, digamos, "ingênua", Firmeza não teria sido tão legitimado. Sua ação, apesar de ter alcançados tamanha reverberação, não foi capaz, todavia, de instaurar outras dinâmicas legitimadoras para além daquelas por ele criticadas- aquelas em relação às quais ele é, inclusive, "benificiado".


Ao fim do processo, mesmo que estejamos todos ainda completamente filiados ao jogo social colocado em questão, parece-nos, todavia, que dele tomamos maior consciência. O desvelamento intencionado pelo artista aconteceu, e os "mistérios" de um processo legitimador que se faz passar por verdadeiro e justo foram (ao menos parcialmente) "descorbertos". Ainda que por um breve momento, o artista foi capaz de fazer sumir a aura das dinâmicas sociais que fazem parecer imparciais as legitimidades construídas. Abriu-se um espelho sobre nós, e foi impossível negar a realidade refletida a partir de nossas ações.


E, desfeita a ilusão da imparcialidade, resta a crueza da consciência de sabermos, mais uma vez, que somos nós que, de maneira sistêmica, somos os responsáveis por um campo de arte que não só fabrica verdades - como é natural e, provavelmente, inevitável-, como também as falseia. A um só tempo produtos e produtores deste sistema, é preciso que deixemos de lado a infame tentativa de procurar um culpado- como fez a imprensa cearense. Quando a responsabilidade fragmenta-se (como ocorre entre os menbros do campo da arte), a culpa dilui-se. É preciso, portanto e sobretudo, analisar o sistema em sua inteireza.


E analisar o sistema é autoanalisarmo-nos. É falar de através de - questioná-lo ao questionarmo-nos a nós mesmos, recursivamente. Sem maiores pretensões de suceder, é válido e urgente que, tal qual Yuri Firmeza, tentemos. Mudar um é mudar o outro, e isso faz pensar que, talvez, se Souzousareta fosse mais inventor que inventado, as lógicas de legitimação de nosso sistema não tivessem sido "apenas" desveladas, mas também postas, de fato, em entropia.


Façamos como o japonês que, ao deslocar a verdade do campo da resposta ao da pergunta, fez sacudir as estruturas do sistema. Apostemos, então, no potencial da pergunta, após a historieta de Firmeza, não quer calar: "mas como mudar?".



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Quem sou eu (no blogue)

Recife, Pernambuco, Brazil
Aqui farei meu diario quase intimo. Mentirei quando preciso. Escreverei em português e, mal ou bem, seguirei com certa coerência as ocilações do espirito, carater e gosto. Desprovido de inteligência precisa, justa será apenas o nome da medida que busca o razoavel no dito. Esperançoso. Jovem gasto, figura preguiçosa e de melancolia tropical sem substância. Porém, como já exprimido em primeiro adjetivo, qualificado e classificado na etiqueta quixotesca. Com Dulceneas e figuras estranhas o "oxymore" pode ser visto como ode a uma máxima de realismo outro do de Cervantes: "bien écrire le médiocre", dizia Flaubert. Mediocres serão meus dizeres. Bem ditos, duvido. Por isso convenho: os grandes nomes citados não devem causar efeito de legitimação. E previno: o estilo do autor das linhas prometidas é tosco, complicado e chato. O importante é misturar minha miséria com outras. Assim o bem dito será o nome de uma vontade de partilhar uma condição e não o da sutileza formal. A bem dizer, aqui findo com minha introdução.