segunda-feira, maio 31, 2004

A escrita

Escrever é uma atividade artificial. No sentido de ser o resultado final, o texto, um artefato. Tratar de temas sensíveis pela escrita parece sempre deixar no homem um sentimento de traição. Pois ater-se aos sentimentos é fazer jogar a razão contra o sensível: refletimos contra o sentimento da péle que sente a dor quando dói, o ardor na quentura.

Escrever é trair

E mesmo a criação do paragrafo impessoal, sem primeira e única pessoa, é ainda assim um efeito produzido pela tecnica. Construimos o distanciamento, a impressão da distância. Na verdade vê-se nisso uma maneira de tentar encontrar palavras falantes por si mesmas, sem intermédio, sem mediação. Tudo ilusão proposital. Traição.

Traição

Intento, mesmo assim, traindo-me, escrever sobre a morte.


Le retable d'Issenheim

Começo afirmando: viver a morte é caracterizar a existência. Digo isso pensando na arte de Ionesco. Na crítica dele à naturalização da morte feita na modernidade. Sim. O mundo moderno impôs seu hedonismo barato, adotou seu carpem diem coagulado no cinismo e ocultou o apelo do momento mori, que é uma espécie de aproveite o dia com lembrete final: “teu dia chegará”. Le roi s’est mort, anunciou Ionesco falando da vida como se ela fosse uma continuação da morte, não o contrário. Inverteu o sinal da cruz... Como Nietzsche salvando o cristo do cristianismo, Ionesco salva a imagem da morte no seu carater emblemático de prática contestatória: se o cristo é lembrado pelo filósofo alemão como um individuo notável o qual teve como qualidade maior um espírito crítico negador da autoridade sacerdotal, a morte em Ionesco aparece como força de negação de uma vida dada ao além, ela é o presente vivido enquanto perda. Lembrei disso ao ver domingo passado no Museu d’Unterlinden Le Retable d’Issenheim de Grünewald. Uma pintura da crucificação de Jesus. Impressionante. Bacon muito inspirou-se dela para nos seus quadros reproduzir as imagens da dor humana. O sensível da carne sangrenta, dos pregos cravados na palma das mãos expressando a agudez da dor pelo estirar dos dedos recontorcidos para cima, da boca azulada, do expressionismo dos pés rasgados. Tudo estático como se a agônia fosse se enternizar... Sempre tive dificuldade com as artes plásticas... Nunca consigo imaginar o movimento indicado nas obras. Alí vi, por isso, uma grande cristalização da dor. Fotografia da agônia dolorida e infinita.

Lembrança mistica

Lembrei também que Tereza e meu pai sempre expressaram uma concepção mística da morte. Acho que a grandeza da visão deles decorre da recusa de apagar a presença da morte na vida. Os dois associam pela mística o carpem diem e momento mori. Vendo o Retable d’Issenheim entendi um pouco dessa associação. Ela quer dizer algo sobre a vida e sua vocação de ser uma busca constante de sentido. Associar vida e morte é uma maneira de preencher o vazio deixado pela dúvida maior, pelo medo de achar que tudo pode acabar simplesmente acabando...





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Quem sou eu (no blogue)

Recife, Pernambuco, Brazil
Aqui farei meu diario quase intimo. Mentirei quando preciso. Escreverei em português e, mal ou bem, seguirei com certa coerência as ocilações do espirito, carater e gosto. Desprovido de inteligência precisa, justa será apenas o nome da medida que busca o razoavel no dito. Esperançoso. Jovem gasto, figura preguiçosa e de melancolia tropical sem substância. Porém, como já exprimido em primeiro adjetivo, qualificado e classificado na etiqueta quixotesca. Com Dulceneas e figuras estranhas o "oxymore" pode ser visto como ode a uma máxima de realismo outro do de Cervantes: "bien écrire le médiocre", dizia Flaubert. Mediocres serão meus dizeres. Bem ditos, duvido. Por isso convenho: os grandes nomes citados não devem causar efeito de legitimação. E previno: o estilo do autor das linhas prometidas é tosco, complicado e chato. O importante é misturar minha miséria com outras. Assim o bem dito será o nome de uma vontade de partilhar uma condição e não o da sutileza formal. A bem dizer, aqui findo com minha introdução.