Vou comentar mais um texto do Observatório sociológico ( http://www.obs.embuste.com.br/ ) para tentar aprofundar os cometários feitos dos textos anteriores. O comentário de Bernardo, por exemplo, deixa-me com pulgas atrás das orelhas, mesmo se concordo com o pano de fundo "histórico" (capital cultural) do argumento usado por ele. No texto abaixo a perspectiva sociológica defendida é de cunho diferente e prefere falar de causas do crime (do problema de como alguém transforma-se em criminoso) como contingência indeterminável pelo raciocínio sociológico devendo o criminoso ser apreciado como dado. Fui e estou sendo formado dentro de uma visão profundamente histórica da sociologia aonde o passado dos indivíduos não pode e não deve ser abstraído ao risco de se perder o significado profundo das ações efetuadas. Como nunca trabalhei com sociologia do crime, não sei se existem problemas intrinsecos aos tipos de objetos estudados em tal disciplina. Contudo é possível vislumbrar, mesmo sem ter lido a respeito, o tipo de conflito existente entre uma sociologia das causas sociais da produção dos criminosos e um tipo de conhecimento sociológico em algum sentido mais pragmático, como no dizer do professor Carlos Augusto, com pretensão não de eliminar mas de controlar o problema. Pessoalmente acho que os dois tipos de visão não são antagônicos e podem ser usados mutuamente para o melhor entendimento da violência. Claro, resta que minha opinião é profundamente tributária de um paradigma específico da minha disciplina. Visão de mundo traduzida da seguinte forma quando se fala sobre a construção social do capital escolar : nada há de mais profundamente desigual, numa sociedade socialmente dividida, do que a igualdade de tratamento entre indivíduos diferentes. Mais. Não se pode entender tais diferenças sem se preocupar com o passado. No caso da violência existe um capital acumulado pelos criminosos na escola da vida. O que me faz pensar que mesmo por razões heurísticas o risco de naturalização é grande se aceitamos o dado(o criminoso) como dado(fato o qual a origem não tem impotância explicativa). Meus comentários serão feitos em mesma fonte, diferente da do texto analisado e entre parenteses.
A ocasião faz o ladrão
Os dois trechos transcritos abaixo demonstram a racionalidade prática que orienta a ação de muitos criminosos. O primeiro é parte de uma entrevista que fiz com um presidiário numa cadeia da região metropolitana de Belo Horizonte. O segundo é parte de uma etnografia feita com arrombadores nas ruas de St. Louis, Missouri, Estados Unidos. Nos dois casos, é possível identificar um certo “conhecimento profissional” desenvolvido pelos criminosos. Uma compreensão mais aprofundada do modo de pensar dos bandidos pode ser útil na orientação de medidas de controle da criminalidade. (Griffos de Jampa)
(Para mim racionalidade prática tem a ver com aprendizado. Diz respeito aos tipos de incorporação específicos produzindo um tipo de relação ao conhecimento como também um saber determinado. Por essa razão a compreensão mais aprofundada do modo de pensar dos bandidos não pode ser desvinculada de um estudo aprofundado sobre os tipos de socialização produtores de tais formas de pensar e agir. O situacionismo do título a ocasião faz o ladrão pode dar a entender que é apenas no momento específico de um roubo que o ladrão vem a ser aquilo que é. )
[Entrevista com presidiário]
A gente róba sempre no lugar mais movimentado. Só no centro da cidade. Na Afonso Pena. É muito mais fácil robar no centro, sô. Pelo seguinte: o policial no centro ele só prende quem ele vê correndo, ele não prende quem ele vê andando, não. Ele pega a pessoa muito pela roupa. Se você róba com uma blusa tira a blusa e coloca dentro da bolsa e sai com outra não tem porque ele te parar. Vai andando calmo no centro... nós sempre robamos muito bem vestidos, então eles nunca deu como suspeita. Achava que era office boy, alguma coisa, andando no centro da cidade. A gente no centro. Robô. Entrô no meio do povo, rapidim entrô dentro do carro. Pra casa. Tem problema nenhum. Tanto que eu rodei, fui preso, num lugar que não é tão movimentado. O pessoal acha que roubar no centro é mais difícil, mas é mais fácil.
A gente róba sempre no lugar mais movimentado. Só no centro da cidade. Na Afonso Pena. É muito mais fácil robar no centro, sô. Pelo seguinte: o policial no centro ele só prende quem ele vê correndo, ele não prende quem ele vê andando, não. Ele pega a pessoa muito pela roupa. Se você róba com uma blusa tira a blusa e coloca dentro da bolsa e sai com outra não tem porque ele te parar. Vai andando calmo no centro... nós sempre robamos muito bem vestidos, então eles nunca deu como suspeita. Achava que era office boy, alguma coisa, andando no centro da cidade. A gente no centro. Robô. Entrô no meio do povo, rapidim entrô dentro do carro. Pra casa. Tem problema nenhum. Tanto que eu rodei, fui preso, num lugar que não é tão movimentado. O pessoal acha que roubar no centro é mais difícil, mas é mais fácil.
[Entrevista com arrombador na rua]
Despite precautions, the force required to break a window inevitably results in a certain amount of noise. And while the offenders accepted this, they had a clear idea about how much and what kind of noise was “safe”, that is, unlikely to attract attention. Without exception, they believed that a single, short, sharp sound was much safer than any sort of extended hammering or thumping. One subject, revealing considerable insight into human nature, explained: “Makin’ one noise don’t matter, but you can’t be makin’ two noises. People hear somethin’ they gon say, ‘What is that? You hear somethin’?’ If they don’t hear somethin’ else, they ain’t gon do nothin’.” [in: Wright, R. T & Decker, S. Burglars on the job. Boston: Northeastern University, 1994.]
Despite precautions, the force required to break a window inevitably results in a certain amount of noise. And while the offenders accepted this, they had a clear idea about how much and what kind of noise was “safe”, that is, unlikely to attract attention. Without exception, they believed that a single, short, sharp sound was much safer than any sort of extended hammering or thumping. One subject, revealing considerable insight into human nature, explained: “Makin’ one noise don’t matter, but you can’t be makin’ two noises. People hear somethin’ they gon say, ‘What is that? You hear somethin’?’ If they don’t hear somethin’ else, they ain’t gon do nothin’.” [in: Wright, R. T & Decker, S. Burglars on the job. Boston: Northeastern University, 1994.]
Durante muito tempo a sociologia procurou entender as causas do crime, especialmente os fatores que fariam com que alguém se tornasse criminoso. O objetivo era conhecer as causas para eliminá-las. Cortar o mal pela raiz. Depois de muita teoria e muita polêmica, a conclusão é que não dá para definir causas ou mesmo fatores. Tornar-se criminoso é resultado de contingências, da associação mais ou menos imprevisível de uma variedade de circunstâncias. Como não é possível definir quais são as causas que levam alguém a se tornar criminoso, o mais sensato é tomar a existência de criminosos como algo dado e, a partir desse ponto, pensar em algum tipo de política de controle do problema que não tenha a pretensão de eliminar as causas profundas do comportamento criminoso.
Desenvolveu-se uma abordagem que parte da idéia de que a oportunidade para a prática do crime se apresenta quando três condições estão dadas: 1) a presença do criminoso, 2) a disponibilidade do alvo, 3) ausência de vigilância. Inicialmente a existência de criminosos foi tomada como um fato evidente e não problemático. Criminosos existem. Ponto. Existindo criminosos, deveríamos então verificar a presença de alvos e a ausência de vigilância (não apenas a vigilância policial, mas também a vigilância que as pessoas exercem umas sobre as outras e sobre o seu patrimônio). A partir da segunda metade do século XX, aumentou muito a disponibilidade de alvos. Eletrodomésticos cada vez menores, aparelhos eletrônicos, automóveis, mais dinheiro em circulação, maior número de lojas, bancos, etc. A vigilância se tornou mais difícil. As mulheres foram trabalhar, as casas passaram a ficar desocupadas durante parte do dia, as pessoas passaram a percorrer distâncias maiores de casa para o trabalho, muitas vezes sozinhas. O anonimato garantido pela cidade grande se consolidou. Enfim, as oportunidades para a prática do crime aumentaram consideravelmente. A questão passou a ser investigar como as rotinas de funcionamento das cidades criam oportunidades (oferecem alvos e dificultam a vigilância) para os criminosos agirem. Descobrindo como as oportunidades se formam, seria possível estabelecer medidas de controle do crime com foco mais preciso. Algumas oportunidades poderiam ser eliminadas, outras poderiam ser, pelo menos, controladas.
(O raciocínio é lógico: estudamos as formas dos criminosos pensarem as oportunidades do crime, descobrindo como elas se formam, seria possível de se estabelecer medidas de contrôle mais precisas. Tudo bem. Mas ao ler a entrevista com o ladrão duas perspectivas me pareceram evidentes: uma é a de que a maneira como ele percebe e analisa a sua própria prática é tributária de um aprendizado feito pela experiência do roubo [como é que ele desenvolveu esse saber contra-intuitivo do roubar sempre no lugar mais movimentado?], a outra, mais individualista, é a de que a prática do roubo é pensada em relação à ação policial["ele pega a pessoa muito pela roupa"]. Nas duas perspectivas a reflexividade da prática do ladrão é evidente e a "situação" do roubo é um produto de uma história. Os agentes sociais usam de seu conhecimento do prejulgamento alheio [os ladrões parecem entender que no Brasil pobreza e marginalidade se misturam na cabeça das pessoas] para criar situações favoráveis a sua atividade. Ora, não vejo por que não se interessar sobre as causas [fatores de socialização] da produção dos tipos criminosos e dos tipos policiais [já que existe uma ação social no sentido weberiano do termo, uns agem visando às ações dos outros] se isso ajuda a entender os porquês da "situação de roubo", que por sinal não são os mesmos em contextos históricos específicos. )
Mas não basta entender como as oportunidades se constituem, é preciso entender como os criminosos percebem a existência das oportunidades. Afinal de contas, são eles que estão nas ruas de olhos abertos em busca da ocasião que faz o ladrão. Daí o estudo sobre “o crime do ponto de vista do criminoso”. Esse tipo de pesquisa é muito comum nos Estados Unidos e agora está chegando ao Brasil. Os dois trechos citados são apenas um pequeno exemplo das informações que podem ser obtidas em entrevistas com os profissionais da área.
(Resumindo: acho que não é preciso jogar fora os acumulos feitos por análises realisadas em termos de socialização dos criminosos, mesmo se algumas utilizações desse tipo de sociologia se tornem anacrônicas para alguns.)
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