Desci as escadas estreitas. Já era quase noite e a Av. Conde da Boa Vista parecia a mesma de sempre. O que digo? As calçadas agora são um pouco mais largas, feitas com tijolos retangulares de um colorido fosco, encardido. Aguns deles são de um vermelho esbraquiçado pela poeira. Ao pisá-los imagino sangue coagulado com terra em cima. As pessoas são tijolos. Olho para uma menina na rua, uma garota de rua, como se dizia. Agora ela está em “situação de rua”. A liguagem são tijolos.
Fico com pena da criança. Lembro que ela é uma criança. Ela tem pouca cor e sorrisos cinzas a enfeitam por contraste quando se confrontam ao seu olhar. Algumas pessoas tem ainda coragem de encarar. Meu sorriso é cinza. Dela não se conhece o riso. E isso é julgamento meu. Sempre sou claro, conciso, moral, miserabilista. Rir também não é meu forte.
Não estou no meu carro, isso é raro. E agora me surpreendo vendo as pessoas dentro dos automóveis. Será que sou assim também quando olhado de fora? Aquele homem de oculos. O que ele faz? Ele alonga o braço direito fazendo uma pequena inclinação para baixo com o ombro, suponho que muda a estação de rádio. Nada mais normal. Logicamente está voltando para casa depois de mais um dia trabalhando sei lá onde. Será que esse cara é feliz? Tem filhos? Afasto-me da minha síndrome Marta Suplicy. Afinal, o cara pode estar satisfeito com a vida de muitas formas.
Mas e aquela menina alí. Uma patricinha, deduzo. Deve estar falando com o namorado. O jeito de sorrir ao celular, de morder o pedaço da unha olhando no retrovisor interno e de não dar a mínima para o engarafamento que tira a paciência de outros motoristas menos distraídos, tudo denucia o namorico da moça. Uma formosura.
Sigo andando. Um ônibus abarrotado, ótima amostra representativa. Não lembro a última vez que entrei numa lata apertada daquelas. Observo do chão o jogo de janelas. Uma mulher alta e bonita sentada perto da porta dianteira projeta seus olhos para fora, ela os move em direção ao que se passa em baixo. Alí, numa Mercedes Bens cinza, um homem conversa com uma menina sorrindo no banco traseiro. Ele usa para isso o mesmo artificio da moça apaixonada, mostrando que os espelhos de carro tem muitas funções latentes.
Fico com pena da criança. Lembro que ela é uma criança. Ela tem pouca cor e sorrisos cinzas a enfeitam por contraste quando se confrontam ao seu olhar. Algumas pessoas tem ainda coragem de encarar. Meu sorriso é cinza. Dela não se conhece o riso. E isso é julgamento meu. Sempre sou claro, conciso, moral, miserabilista. Rir também não é meu forte.
Não estou no meu carro, isso é raro. E agora me surpreendo vendo as pessoas dentro dos automóveis. Será que sou assim também quando olhado de fora? Aquele homem de oculos. O que ele faz? Ele alonga o braço direito fazendo uma pequena inclinação para baixo com o ombro, suponho que muda a estação de rádio. Nada mais normal. Logicamente está voltando para casa depois de mais um dia trabalhando sei lá onde. Será que esse cara é feliz? Tem filhos? Afasto-me da minha síndrome Marta Suplicy. Afinal, o cara pode estar satisfeito com a vida de muitas formas.
Mas e aquela menina alí. Uma patricinha, deduzo. Deve estar falando com o namorado. O jeito de sorrir ao celular, de morder o pedaço da unha olhando no retrovisor interno e de não dar a mínima para o engarafamento que tira a paciência de outros motoristas menos distraídos, tudo denucia o namorico da moça. Uma formosura.
Sigo andando. Um ônibus abarrotado, ótima amostra representativa. Não lembro a última vez que entrei numa lata apertada daquelas. Observo do chão o jogo de janelas. Uma mulher alta e bonita sentada perto da porta dianteira projeta seus olhos para fora, ela os move em direção ao que se passa em baixo. Alí, numa Mercedes Bens cinza, um homem conversa com uma menina sorrindo no banco traseiro. Ele usa para isso o mesmo artificio da moça apaixonada, mostrando que os espelhos de carro tem muitas funções latentes.
Fora dos veículos as pessoas olham e não percebem a divisão espacial injusta contida entre as duas janelas, uma alta, transparente e panorâmica, a outra baixa, escura, mas automática e climatizada.
Alguém com uma cara de tijolo vermelho vem perdir esmola no sinal ao homem de janela automática. Esmola é dinheiro encardido, é compra violenta da vergonha esquecida pelo hábito de pedir(e de dar e não dar). O vidro desce e uma nota de cinco reais aparece, sai da mão limpa e passa para uma suja, de cor escura como a do encarnado calçamento. Somos cristãos, compadecemos limpos da miséria alheia empodrecida. Dar dinheiro não é um gesto de compra, diria. Porque essa troca entre a culpa e o cinco reais não revela a elevação maior de nossas relações humanas.
Continuo minha caminhada. Penso no dinheiro. Faço uma pequena digressão filosófica sobre a natureza humana... Da força de trabalho ao corpo da prostituta, do carro importado à passagem do ônibus superlotado, do valor das coisas ao das pessoas, tudo está mediado pela monetarização de nossas sociedades. No caso das putas, essa coisa do dinheiro as coloca em situação ambivalente: na prostituição a relação entre os sexos está submetida absolutamente ao ato sexual( ou sensual no sentido mais amplo), a mulher está aí rebaixada à sua generalidade sem especificidade humana própria, ela representa o que cada exemplar genericamente pode oferecer (nenhum aspecto específico de sua personalidade é levado em conta). O dinheiro aí, como na psicanalise, tem um papel fundamental porque ele é o equivalente econômico dessa relação reificante. Ele, como a mulher prostituta, é o tipo genérico dos valores econômicos. Simmel tem uma frase lapidar a esse respeito:
Alguém com uma cara de tijolo vermelho vem perdir esmola no sinal ao homem de janela automática. Esmola é dinheiro encardido, é compra violenta da vergonha esquecida pelo hábito de pedir(e de dar e não dar). O vidro desce e uma nota de cinco reais aparece, sai da mão limpa e passa para uma suja, de cor escura como a do encarnado calçamento. Somos cristãos, compadecemos limpos da miséria alheia empodrecida. Dar dinheiro não é um gesto de compra, diria. Porque essa troca entre a culpa e o cinco reais não revela a elevação maior de nossas relações humanas.
Continuo minha caminhada. Penso no dinheiro. Faço uma pequena digressão filosófica sobre a natureza humana... Da força de trabalho ao corpo da prostituta, do carro importado à passagem do ônibus superlotado, do valor das coisas ao das pessoas, tudo está mediado pela monetarização de nossas sociedades. No caso das putas, essa coisa do dinheiro as coloca em situação ambivalente: na prostituição a relação entre os sexos está submetida absolutamente ao ato sexual( ou sensual no sentido mais amplo), a mulher está aí rebaixada à sua generalidade sem especificidade humana própria, ela representa o que cada exemplar genericamente pode oferecer (nenhum aspecto específico de sua personalidade é levado em conta). O dinheiro aí, como na psicanalise, tem um papel fundamental porque ele é o equivalente econômico dessa relação reificante. Ele, como a mulher prostituta, é o tipo genérico dos valores econômicos. Simmel tem uma frase lapidar a esse respeito:
“ O nível inferior da dignidade humana é alcançado quando, por uma retribuição tão anônima, tão exterior e objetiva, uma mulher concede o que ela possue de mais íntimo e mais pessoal e que não deveria sacrificar a não ser por um impulso totalmente individual, contrabalançado por uma doação não menos individual do homem em relação a mulher”( Simmel 2006, p.52)*.
Deixo a filosofia. Na verdade não existe ambivalência alguma. Chego ao fim da minha caminhada inesperada. Olho meu carro parado na garagem de casa. Vejo-me no retrovisor... as olheiras são o contorno do passeio que fiz. Elas delineiam também o peso dos meus pés calçados por um par de tênes Nike, pesados e sujos com a poeira das culpas de minha condição de classe média.
*Gerg Simmel (2006), A Filosofia do Amor, São Paulo, Martins Fontes.
4 comentários:
Gostei muito do texto, Jampa!
Tô tentando sair da caverna petit à petit.
Abração,
Rodrigo - Berlândja :p
Berlândia,
que saudade de você. Outro dia estava lendo o Lavoura Arcaica, presente seu para mim:a dedicatória vale o livro. Pensei até em te ligar para re-agradecer...
De toda forma, ao sair da caverna, dê aquele toque aristotelico sem medo das contradições que a lógica não der conta!
Abração,
Jampa.
grande texto, caro jampa.
um abraço, sem resignaçao.
João, não tinha visto seu comentário. Tou indo por ai por perto para o reveillon, qualquer coisa, me avise! Abraço.
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