domingo, abril 12, 2009

UFPE via Universités en France: estranhamento antropológico na experiência acadêmica de um jovem suburbano (Parte II)

Já que promessa é dívida:

Lembrando...


Em novembro de 2008, escrevi uma rápida introdução à reflexão que venho agora terminar. Resumiria da seguinte forma aquele texto introdutório: tendo notado diferenças e semelhaças entre as experiências de estadia na França minha e do professor Luciano Oliveira, vi-me motivado a escrever sobre um “estranhamento” que não entrou no foco de reflexão do belo texto do professor.

Então é um texto de complemento ao que foi dito por Luciano com desdobramentos críticos possíveis, já que reflete especificamente sobre o estranhamento meu com universo acadêmico brasileiro ao voltar do francês.


A gramática de ida de um estranhamento: da UFPE à França


O choque ao entrar na universidade francesa foi imenso. Demorei para entender o sistema de organização da vida acadêmica. A complicação começou para mim, como diriam eles por lá, no começo. Diferentemente da organização do curso de Ciências Sociais no Brasil ( que você tem o primeiro diploma ao final de 4 anos ou 5 anos), lá o curso de sociologia, o que eu escolhi, era divido em diversas etapas mais curtas. Cada uma delas era marcada pela entrega de um diploma que garantia, objetivamente, a possibilidade de se postular vagas de trabalho num determinado nível de emprego, tal como acontece com os concursos públicos brasileiros. Na França, porém, o primeiro diploma você leva com apenas dois anos de universidade.


Então lá fui eu, cursar o que eles chamavam na época de DEUG (Diploma de Estudo Universitário Geral), o tal que tinha duração de 2 anos. Como consegui validar as disciplinas que havia feito na UFPE, entrei já no segundo ano. É engraçado como as vezes a trama oficial de uma instituição pode ser enganosa: ao ler termo a termo as formas de organização, o modelo organizacional das universidades brasileira e francesa, você encontra muito mais semelhanças do que realmente existem na realidade.


As ementas das disciplinas eram, no que diz respeito aos autores, e estranhamente, muito semelhantes às brasileiras. Claro, classico é classico, diriam. Mas toda a dinâmica era diferente. Cursei disciplinas obrigatórias e opcionais. As obrigatórias: sociologia geral, estatística, métodos. As opcionais: sociologia do trabalho, sociologia cognitiva, sociologia das organizações, sociologia da família, sociologia da velhice, etc. A cada semestre você podia escolher duas ou três opcionais. Os cursos eram divididos também em “aulas magistrais” e “trabalho dirigido”.


A aula magistral tinha um tom solene. Era bem expositiva, sem nenhuma interação entre professor e aluno. Nela, por conta disso, era muito grande o volume de conteúdo a ser anotado. Geralmente o que se via nelas eram sínteses históricas mais ou menos bem feitas (dependia do professor) a respeito de cada disciplina. O curso magistral, como era também chamado, era dado nos anfiteatros com a presença massiva de alunos (cheguei a ver aula com mais de trezentos estudantes). Você tanto tinha cursos mais gerais (socialogia geral) que tratavam de expor, de maneira as vezes bem simplificada, o pensamento dos clássicos (Weber, Durkheime, Marx, Mauss, Escola de Chigago, um pouco de Merton, etc.), como também, no mesmo formato, você tinha cursos de sociologias mais específicas, sociologia do trabalho, por exemplo, que situava historicamente como esses clássicos fudavam, naquela especialidade, a perpectiva sociológica.


Na minha cabeça esses cursos magistrais tinham a função de inculcar nos estudantes iniciantes as perspectivas históricas que fundam o raciocinio sociológico. Assim, a maioria deles estava organizada de maneira muito semelhante: começavam por uma descrição sobre como um determinado objeto era analisado ou entendido socialmente num dado momento histórico, passavam por uma contextualização da modernidade e o advento da sociologia a patir das revoluções indutrial e francesa, e concluiam com a especificação sociológica do objeto em questão(que podia ser o trabalho, a velhice, a economia etc.). Claro, esse modelo variava e ganhava ou perdia em sofisticação dependendo da qualidade do professor, mas no geral, isso tinha tom de ladainha, excetuando aí, claro, as aulas magistrais de estatística. Note-se: sssas aulas eram de cultura sociológica, digamos assim, eram aulas para decorar conteúdo tal como dado.


As aulas de trabalho dirigido eram aulas de interpretação de texto, o close reading dos anglossaxonicos. Basicamente treinavamos técnicas e mais técnicas de leitura. Análise estrutural, leitura vertical, etc. Tudo isso, em cima de textos escolhidos dos cursos magistrais. Nelas você tinha um contado maior com o professor havendo mais interação e diálogo. Note-se: aqui tinhamos e podíamos fazer uma distinção muito clara entre o procedimento decoreba das aulas magistrais e o das técnicas de leitura e pesquisa, dois procedimentos que, apesar de relacionados, tinham dinâmicas bem específicas. Essa distinção, como visto, está inscrita nas instituições na maneira mesma de dividir o trabalho de ensino.



Uma outra coisa importante que também notei: a carga horária de aulas é extremamente reduzida se comparada à brasileira. E ela vai diminuindo ainda mais na medida em que você vai passando as etapas. A título de exemplo, no mestrado, por exemplo, eu tinha apenas duas aulas por semana com duas horas de duração cada, e isso durante um semestre. O segundo semestre não havia aulas e você dedicava o seu tempo aos seminários de pesquisa e ao seu próprio trabalho.


O estranhamento em detalhe: ainda lá


Além da lingua francesa e suas especificidades, era para mim muito esquisito no início ver a aplicação com que a maioria dos estudantes simplesmente anotava tudo o que era dito nas aulas. Anotação dos cursos, ou seja, transcrever quase que palavra por palavra tudo que o professor diz, parecia para mim coisa de copista. Mas a transcrição é uma verdadeira instituição escolar à part entière na França.


Para que as notas se realisem por inteiro existem técnicas de abreviação de idéias e palavras e até mesmo de frases inteiras. Essas técnicas são todas assimiladas na escola francesa. Elas funcionam, quando bem feitas, como exercício para articulação lógica do pensamento. Mas para mim que estava acostumado a assistir aula ouvindo sem escrever absolutamente nada, tentando apenas entender o que o professor estava dizendo, aquilo tudo foi um grande tormento, além da surpresa de rever coisas do arco da velha sendo operadas ali naquele meio. Aprender de cor e salteado, era algo que achava não mais ouvir falar na minha vida.


Mas depois dessas surpresas vinheram as provas e entendi a razão de ser daquela técnica.É que os professores fazem provas que são na verdade “maneiras de transcrever o que se falou durante o curso”. O que para mim, ao menos naquele momento, não deixava de ser justo, na medida em que de fato se subentende, sempre, numa situação de avaliação escolar, que o que está sendo avaliado é o conteúdo assimilado durante o curso oferecido. E, falando em justiça, o anonimato das provas, que eram corrigidas identificadas apenas com número de matrícula, não podendo o professor saber julgar por critérios pessoais uma prova de tal ou de qual aluno, também foi algo novo para mim na universidade.



Outra coisa que me marcou foi a presença desse pressuposto pouco didático muito forte no ambiente universitário francês, que ao meu ver, se traduz na fórmula mesma da aula magistral: a distância entre o professor e o aluno é também marcada pela fraqueza de uma relação pedagógica instaurada sob premissa de que os “alunos devem alcançar a seu custo o nível dos professores e não o contrário”, o que faz com que, muitas vezes, pouco ou nenhum esforço seja feito por parte dos mestres para que se retire das diversas “maneiras de dizer a mesma coisa” uma que funcione, como quer a pedagogia, para facilitar a entrada dos alunos naquele universo árido da sua disciplina específica.


Sociologias francesas


Na França estudei em várias universidades, em diferentes cidades, situadas em diferentes regiões do país do fromage, mas também a terra de Durkheim, Bataille, Bourdieu, Aron, Sartre, Koyré, Lévis-Straus, etc. a lista não tem fim. O que percebi? Notei que cada universidade tem uma linha. Cada uma assimila de maneira mais ou menos coerente os incontornaveis dos autores incontornaveis.A cada geração de intelectuais franceses você encontra correspondentes de um pensamento que se tornou necessário. Assim, mesmo com a superioridade econômica e de produção das universidades americanas, dos EUA ao Brasil você encontra essas leituras francesas que se tornaram obrigatórias, em vários sentidos, porque instauraram novos ângulos, novos paradigmas providos de força e autonomia para imanar ao sistema mais geral de produção intelectual referências sem as quais seu trabalho estaria “incompleto”.


Na verdade, o que eu gostaria de salientar é que apesar dessa diversidade de linhas, existe uma estabilidade que é dada pela estrutura geral da educação universitária. Por exemplo, estudei em três cidades diferentes, em três universidades: Nancy, Monpellier e Lyon. As três bem diferentes entre si, mas todas elas trabalham naquele esquema das aulas magistrais e trabalhos dirigidos, efetuando assim, cada uma delas dentro de seu filtro específico, a distinção entre acumulação e produção de conhecimento sociológico.



Na primeira o foco era sociologia do trabalho. Existiam dois grupos que disputavam espaço e poder dentro da universidade e essa disputa também se traduzia nas opções intelectuais, expressas por afinidades ou contrastes com idéias já firmadas dentro universo acadêmico conhecido: de um lado, grosso modo, você tinha uma corrente que se identificava com a tradição durkheimiana orietada pelo viés histórico como a trazida pela obra de Pierre Bourdieu. Do outro, um grupo se indentificava, de maneira mais ou menos explícita, com a orientação de trabalho do individualismo metodologico cujo mais alto representante francês era nanquele momento Raymond Boudon e cuja filiação na tradição francesa se dava no vínculo e imbricação daquele pensamento com a filosofia da liberdade de Sartre.



Na segunda a grande influência era de Michel Marfesolli. A assimilação dos dois grandes expoentes da sociologia francesa (Boudon e Bourdieu) se dava de maneira completamente diferente. Os dois eram lidos como representantes nefastos de uma ciência racionalista, positivista, empiricista,etc. Tive professores como Jean-Marie Brohm, que era de uma erudição enorme, de uma impressionante cultura filosófica, que pautava seus trabalhos nas referencias da fenomenologia, da psicanálise, do marxismo (esse tipo de salada só tinha espaço lá em Montpellier). Foi com ele que fiz meu primeiro trabalho de final de curso, que era uma análise dos cadernos de Nijinsky (gosto deste texto de um psiquiatra sobre o caso do bailarino). Para mim aquilo não era sociologia, mas hoje percebo como o exercicio foi bastante expressivo para mim por conta do contexto daquela universidade. Percebi, com aquilo, que apesar de toda a diferença entre uma e outra universidade, existia um espécie de coeficiente mínimo comum, um denominador comum que fazia da sociologia uma disciplina que era ensinada da mesma maneira nas diversas universidades. Tive aulas de estatística lá, por exemplo, e os professores apesar de defender àquela “filosofização” toda da sociologia, ensinavam os procedimentos técnicos de análise que hoje fazem parte do patrimônio comum da disciplina.



Já em Lyon encontrei um grupo forte trabalhando com sociologia da socialização, o GRS (Groupe de Recherche sur la socialisation).O grupo era e é animado e dirigido pelo sociólogo Bernard Lahire que se auto-intitula um bourdieusiano heterodoxo. Na univesidade de Lyon, no GRS, defini as linhas de trabalho e o enquadramento teorico-medotodologico que hoje guiam o meu trabalho de tese. A universidade também era bem diversa e encontrei, pela primeira vez, um grupo de pesquisa que trabalhava com a sociologia das ciências inspirada na obra de Bruno Latour. Tenho até uma amiga que trabalhava a simetria de não sei o que num contexto onde se discute o impacto na natureza em regiões com turbinas de minério... Sinceramente, nunca entendi do que se tratava.



Vontando à UFPE: descreveria assim meu estranhamento ...



Meu processo de formação na França, que durou 6 anos mais ou menos, gerou uma forte aculturação. Voltei para fazer um doutorado no CFCH e descobri: todo o esforço de assimilação que fiz para entrar naquele universo, de adaptação à cultura e às práticas intelectuais ali operando, causaram um grande impacto em mim.



O estranhamento do retorno se deu de maneira muito intensa e forte nos primeiros momentos. Eu voltei querendo desbravar sociologicamente o Recife, Pernambuco, o Brasil, mas encontro um ambiente intelectual extremamente avesso ao trabalho rasteiro, mas extremamente importante, da sociologia empirica. Sinto-me isolado, apesar de ter sido acolhido com entusiasmo pelos professores e orientadores. As práticas de produção do programa me pareceram ancoradas muito fortemente numa perspectiva que não distingue com devida ênfase o trabalho de acumulação do saber do de produção de conhecimento através da pesquisa: base forte de minha formação francesa. Assim, fui acolhido no seio do PPGS (program de pós-graduação em sociologia) sendo avaliado por um projeto de pesquisa, e, durante o percorrer do doutorado, o primeiro ano é todo dedicado a disciplinas teóricas, me vi tendo que reviver um processo reflexivo que ancora seu procedimento na acumulação de cultura sociológica de maneira completamente apartada do universo da pesquisa.



Essa apartação é extremamente nociva porque produz trabalhos quando empiricos, vázios de propósito sociológico proprimente dito (são muitas vezes mera sociografia em linguagem estatística rasteira formulada nas tabelas do SPSS). Quando teóricos, são apenas isso, ou seja, são teóricos em demasia, o que se tranforma em suma, em sua grande maioria, na generalizão precoce de explicações que ainda não fizeram sua prova em contextos como o do nordeste brasileiro. O que ocorre nesses casos é a impultação da explicabilidade formal da teoria a um contexo exogeno ao de sua aplicação inicial. O que implica, bem das vezes, num reforço à situação de colonialismo mental a qual nos submetemos de muito bom grado aos grandes centros de produção acadêmica.


Diria mais, não é só na quase absoluta falta de disciplinas que estudem , digamos assim, a tradição sociológica brasileira e os problemas específicos que um sociólogo precisa enfrentar aqui na periferia para produzir conhecimento válido a respeito do mundo social que me sentia só, mas na postura mesma de inquerir o mundo social sem “tocar” nele, jogando conceitos de la para cá e de cá para lá, sem a responsabilidade cosequente de contruir interpretações válidas a partir de fatos sociais verificáveis do ponto de vista de “experimentação empirica”, ou seja, de dados que possam ser analisados de maneira independente do ponto de vista que vai analisá-los. Seria por isso, e apenas nesse sentido, que a sociologia trabalharia dentro de um quandro onde suas teses podem ser refutadas e ou validadas. Não conheço outra forma. Com isso, quero crer, não é preciso entrar numa sangria desatada na busca de uma cientificidade popperiana ou coisa dessa natureza. O propósito híbrido da construção da episteme sociologica admite um espaço assertivo mais ameno, onde a idéia de verificação anda de mãos dadas com a certeza de que a linguagem sociológica só anda para frente diante do arbitrio que representa a interpretação em liguagem corrente, ou seja, fora do jargão mais formalizado, por exemplo, da estatística, usada pelos sociólogos como ferramenta.



Mas não me arrependo da volta. É nesse estranhamento aqui que vou descobrindo empiricamente o significado profundo do que são as chamadas condições sociais (materiais e simbólicas) de produção do conhecimento sociológico em Pernambuco (ao menos, no que diz respeito ao meu realmente amado CFCH). Sem esta experiência tenho a impressão de que minha sociologia seria uma espécie de paisagismo exótico do Brasil para francês ver. Claro, hoje as relações de dominação intelectuais são bem mais complexas do que a simples idéia de colonialismo cultural poderia dar conta, mas sendo colonialismo cultural ou outro nome que se queira dar, parece-me claro o quanto precisamos percorrer para nos livrar de algumas dessas práticas para obter mais autonomia. É isso em todo caso que meu estranhamento diz...

2 comentários:

Cesar disse...

Legal o texto, Jampa. Quase etnográfico, explicando descritivamente bem as lógicas de funcionamento de cada local.

Alex Castro disse...

adorei.

Quem sou eu (no blogue)

Recife, Pernambuco, Brazil
Aqui farei meu diario quase intimo. Mentirei quando preciso. Escreverei em português e, mal ou bem, seguirei com certa coerência as ocilações do espirito, carater e gosto. Desprovido de inteligência precisa, justa será apenas o nome da medida que busca o razoavel no dito. Esperançoso. Jovem gasto, figura preguiçosa e de melancolia tropical sem substância. Porém, como já exprimido em primeiro adjetivo, qualificado e classificado na etiqueta quixotesca. Com Dulceneas e figuras estranhas o "oxymore" pode ser visto como ode a uma máxima de realismo outro do de Cervantes: "bien écrire le médiocre", dizia Flaubert. Mediocres serão meus dizeres. Bem ditos, duvido. Por isso convenho: os grandes nomes citados não devem causar efeito de legitimação. E previno: o estilo do autor das linhas prometidas é tosco, complicado e chato. O importante é misturar minha miséria com outras. Assim o bem dito será o nome de uma vontade de partilhar uma condição e não o da sutileza formal. A bem dizer, aqui findo com minha introdução.