terça-feira, outubro 21, 2008

Tragédia de Santo André: a culpa é dos Deuses gregos?

Uma das coisas que sempre admirei nas tragédias de Shakespeare é o fato da predestinação de seus personagens se transformar em elemento constitutivo da própria narrativa. Assim, nós leitores, que muitas vezes já sabemos o final da estória, temos sempre aquela impressão que algo vai mudar, e, junto com o impulso narrativo, esperamos que a luta contra o inelutável dos Romeus e Julietas (que configura a trama das tragédias) será retribuído com a vitória do amor em vida.


Ledo engano, Shakespeare, em bom leitor dos gregos sabia que a dimensão propriamente trágica do gênero estava nessa ruptura, nesse fosso existente entre o mundo da vida e suas expectativas mais nobres. O amor em pleno mundo hostil só pode se realizar plenamente ao eliminar sua possibilidade mesma. É preciso destruir os agentes da mediação chamada amor, é preciso matar os amantes. Destino por definição inelutável, obra silenciosa de acasos pré-ocasionados por maldições, por deuses furiosos, por forças conhecidamente desconhecidas às quais homens e mulheres se conformam com ou sem relutância, a tragédia não produziria efeito de força dramática sem o desfecho esperado (apesar de não desejado, nem pelos leitores nem pelos personagens).



Graças a mídia (sobretudo a cobertura da Globo e da TV Record) O caso de Santo André trouxe elementos trágicos da ficção para mundo real. Contudo é preciso reforçar algo: a ficção por mais realista que seja não é nunca mais do que a produção de um efeito do real. Ou seja, ela é a produção de um efeito de conformidade ao real fundado na sobreposição formal das normas sociais que aderimos num dado momento como sendo reais. A mídia “jornalística” (sobretudo a televisiva) criminosamente jogou com esses efeitos da relação entre mundo real e fictício. Mas, a meu ver criminosamente, o fez em sentido inverso. O efeito de ficção, que é bem real em seus efeitos foi nesse caso como em outros bastante desastroso.


O cineasta Bruno Barreto vendo a centralidade da mídia para entender o seqüestro disse o seguinte sobre o caso:


“Li tudo a respeito desse seqüestro em Santo André nos jornais. A presença que a mídia tem é muito grande na vida das pessoas, vejo a intersecção das duas histórias por aí [entre a história de Eloá e a que ele reconta em seu novo filme, o Última Parada 174.] A necessidade que Lindemberg [Fernandes Alves] tinha de ser visível também aconteceu com o ônibus, das pessoas verem sua dor. Esse é um dos subtextos presentes no filme."



Subtexto ao mesmo tempo do filme e do mundo a mídia agiu de maneira irresponsável no local da crise. Para mim ela foi enquanto visão de mídia não apenas um subtexto, mas um pré-texto do crime, agindo como principal responsável junto à polícia da tragédia real. Foi a mídia televisa quem deu o tom e contorno de coisa já vista.


Na sua relação corrosiva com o real (porque sensacionalista) trouxeram como marca das transmissões ao vivo do caso a arrogância dos que crêem “formar opiniões” ou acreditam “criar ou recriar o real”. A mídia televisiva (sobretudo as coberturas da Globo e Record) eliminando os registros da linguagem informativa insistiram na narrativização da situação tornando a realidade um "mero" efeito de ficção. A responsabilidade da mídia sensacionalista precisa ser discutida e apurada.


Na ficção do real a potência de evocação de um estilo produz, pelos princípios de apreensão do real dados pela linguagem para linguagem, o efeito de decifração do mundo, e, em sentido inverso ao efeito de ficção trazido pela espetacularização da vida real, dá acesso inteligível aos desígnios das trajetórias de vida por ele sendo narradas e ou descritas. No efeito de ficção a vida mundana ganha contornos extra-ordinários e a simples presença da mídia televisiva superdimensiona os fatos.
Narrativa da Narrativa
Assim...


No caso dessa tragédia real não shakespeariana, Eloá não amava mais Lindemberg. Inconformado, o rapaz partiu para o tudo ou nada do sentimento de posse. Como um Paulo Honório urbano Lidemberg não admitia dividir Eloá com ninguém. Covarde, preferiu coloca-la em cativeiro e depois mata-la a ceder os desígnios do acaso amoroso. Pressionado por todos (mídia, policia, entre outros),o amor doentio do jovem se desfez em dor sem volta e sem reparo. Para ele, para ela. De quem é a culpa? Claro, do rapaz.



Mas indo além da obviedade de que Lidemberg deve responder pelos crimes por ele cometidos, existe algo mais a se pensar para compreensão do ocorrido em termos do interesse público do caso: em que medida não foi o próprio criminoso também vítima de uma orquestração de forças (sociais, psíquicas, dos deuses gregos da mídia, da polícia) que o levaram a por fim de maneira tão covarde ao amor de sua vida? A essa pergunta nós deveríamos debater para procurar respostas a respeito da irreversibilidade e redundância de nossos destinos de brasileiros miseráveis (miserável aqui em sentido social da palavra).Digo de antemão não crer existir nessa proposição uma intenção de vitimizar o criminoso.


Pessoalmente acredito que os responsáveis institucionais dessa tragédia particular são no mínimo dois: a polícia incompetente que não soube lidar com a pressão da mídia cedendo à espetacularização do crime e a mídia irresponsável que na ânsia de audiência não soube manter-se em sua função. (ver comentários a esse respeito aqui –cf comentários). E mais, isso porque borrar as fronteiras entre ficção e realidade sem mostrar quem está mediando a estrangulação desses limites deveria ser considerado crime...


Claro que outras lógicas operaram no caso. Para o Colcha de Retalhos, por exemplo, a questão de gênero mediou o sentimento de posse do rapaz o que explicaria em certa medida o final trágico. Tudo bem, eu acredito que o fato de ser homem deve ter em alguma instância impactado no tipo de desespero de Lindemberg. Mas volto à inversão da lógica do real pela do ficcional: se considero a origem simples de Lidemberg, origem real de um jovem pobre saindo da adolescência, fica difícil não acreditar que a mídia não tenha sido o trunfo final do destino trágico dessa história, na sua operação de produzir a ficção do real. O que ela continua fazendo sem dó no decorrer de sua cobertura. Acuado, superdimencionando suas próprias atitudes em cadeia nacional, Lidemberg fez o que fez. Culpado, sim. Deve pagar pelos crimes que cometeu, sim.


Mas a culpa, dizia Camus, tem algo de supra-jurídico. A ignorância a atenua em direito, mas não em consciência, como no caso de Édipo Rei. Eu diria mais, a culpa tem algo de extra-social (ela é mais social ainda) no que ela tem de social nos indivíduos. Existindo em Lidemberg, não se encerra nele. E é sobre essa culpabilidade extensiva ao mundo social que o debate público deveria se ater mais fortemente. Pois a mídia e a polícia nos devem explicações, assim como os malvados deuses gregos... Afinal, mídia e polícia foram, a meu ver, os representantes modernos da hostilidade do mundo que, como numa peça de Shakespeare, apareciam como mediadores da esperança de um final diferente, mas foram, finalmente e verdadeiramente, os fatores da obstinação do destino. Destino de Eloá. Destino de Lidemberg. E nosso destino também. Porque o problema para nós cidadãos continua o mesmo: nossa impotência diante de certos Deuses...

4 comentários:

João disse...

excelente texto, meu caro, acertou na mosca! acho até que deverias ir mais longe(desenvolvendo em outros capítulos) nesta questão tão atemporal quanto atual, a dos paradoxos da ficção.
um grande abraço!

Anônimo disse...

você pode entrar em contato pelo editor.amalgama@gmail.com? eu teria interesse em reproduzir esse seu texto no Amálgama.

Anônimo disse...

Oi João, de alguma forma penso essa relação do real e da ficção nos meus trabalhos. Mais dia menos dia sai algo mais fino e sistemático sobre isso. :)

Anônimo disse...

em minha prévia impressão acho que não há que se falar em culpabilidade...Pelo que eu acompanhei do caso trata-se muito mais de um caso de inimputabilidade... Ou seja, aquele rapaz teve foi uma crise passional.
(Hammer)

Quem sou eu (no blogue)

Recife, Pernambuco, Brazil
Aqui farei meu diario quase intimo. Mentirei quando preciso. Escreverei em português e, mal ou bem, seguirei com certa coerência as ocilações do espirito, carater e gosto. Desprovido de inteligência precisa, justa será apenas o nome da medida que busca o razoavel no dito. Esperançoso. Jovem gasto, figura preguiçosa e de melancolia tropical sem substância. Porém, como já exprimido em primeiro adjetivo, qualificado e classificado na etiqueta quixotesca. Com Dulceneas e figuras estranhas o "oxymore" pode ser visto como ode a uma máxima de realismo outro do de Cervantes: "bien écrire le médiocre", dizia Flaubert. Mediocres serão meus dizeres. Bem ditos, duvido. Por isso convenho: os grandes nomes citados não devem causar efeito de legitimação. E previno: o estilo do autor das linhas prometidas é tosco, complicado e chato. O importante é misturar minha miséria com outras. Assim o bem dito será o nome de uma vontade de partilhar uma condição e não o da sutileza formal. A bem dizer, aqui findo com minha introdução.